sábado, 26 de dezembro de 2020

“São Só Palavras”

por Carlos Magno Abreu

Dia 01 de dezembro de 2020 - A vacina chinesa é a primeira a ser aprovada em todo o mundo, com eficácia de proteção de 95%. A população chinesa começa a ser vacinada imediatamente e há um esforço de produção para produzir bilhões de doses em tempo recorde. Outras vacinas devem ser aprovadas ainda nesse mês.

Dia 05 de dezembro de 2020 - Ainda inconformado com a derrota, o atual presidente americano segue afirmando que as eleições foram fraudadas e que caso seu recurso à Suprema Corte não seja deferido, poderá recorrer à pólvora para ser ouvido. A imprensa global não considera real sua ameaça, pois o tem como apenas um mau perdedor falastrão, muito aquém da liturgia mínima para a responsabilidade do cargo. Após discorrer sobre tal assertiva, o principal analista político da televisão diz com convicção: - “São só palavras.”

Dia 31 de dezembro de 2020 - Durante a noite de réveillon, dezenas de pessoas são mortas em um atentado terrorista em Washington. Dentre as vitimas fatais, está o  novo presidente eleito. A vice-presidenta foi gravemente ferida e se encontra internada no CTI em coma induzido.

Dia 01 de janeiro de 2021 - O Governo Americano divulga que identificou uma célula terrorista chinesa como a responsável pelo ataque e que uma grande operação está em vias de prender todos seus membros. Horas depois, um grande cerco policial passa a ser televisionado e, após intenso tiroteio, todos os terroristas são mortos. Toda a  imprensa passa a suspeitar do atentado e de seu desfecho. A China nega veementemente qualquer participação no ato terrorista, assim como nega que qualquer cidadão chinês esteja envolvido. No dia seguinte, os corpos dos supostos terroristas são “sepultados” em alto mar.

Dia 05 de janeiro de 2021 - A vice-presidenta não resiste aos ferimentos e tem sua morte cerebral decretada. Ato contínuo, o atual presidente americano se proclama presidente interino até que novas eleições sejam marcadas. Imediatamente suspende todas as relações diplomáticas com a China, cancela todos os contratos com qualquer empresa chinesa e proíbe que a vacina chinesa seja administrada em todo o território americano. Em apoio, governo brasileiro também interrompe qualquer relação diplomática e comercial com a China e igualmente proíbe a vacina chinesa.

Dia 06 de janeiro de 2021 - A China se fecha completamente. Suspende a comercialização da vacina em todo o mundo e cancela todos os contratos comercias. Todas as embaixadas são fechadas. Convoca todos os cidadãos chineses que residem no exterior a retornarem imediatamente. Quem não regressar agora, será considerado inimigo da China e executado em caso de retorno tardio. Proíbe qualquer vôo em seu o espaço aéreo, inclusive a passagem de satélites. Como prova, diversos satélites Starlink sobre a China são destruídos no espaço.

Dia 18 de janeiro de 2021 - Em coletiva mundial, o presidente dos EUA declara guerra à China. Ainda durante a coletiva de imprensa, diversos institutos em várias partes do mundo registam explosões nucleares em território chinês. Estima-se que milhões tenham morrido nesse dia. As Forças Armadas americanas invadem a China, parcialmente destruída em virtude do massivo ataque nuclear. Os sobreviventes são dizimados. Nuvens radioativas atingem a Europa e a Asia. Alimentos produzidos nessa região são contaminados e tem seu consumo proibido.

Dia 19 de janeiro de 2021 - Em mais uma coletiva mundial, o presidente dos EUA declara que a vacina americana foi aprovada, com eficácia de proteção maior que 90% e que toda a população americana será vacinada em um mês. Bilhões de doses serão produzidas e estima-se que até o final de 2021, mais da metade da população do planeta já terá sido vacinada. A humanidade comemora aliviada.

Dia 20 de janeiro de 2021 - O governo brasileiro informa que assinou um acordo com o governo americano e que mais de 200 milhões de doses da vacina serão imediatamente doadas. A campanha de vacinação será realizada pelo SUS, de forma gratuita e será completamente opcional. A população brasileira respira aliviada. No mesmo dia, o Brasil se torna o maior parceiro comercial dos EUA. Face à iminência de uma crise global de abastecimento alimentar, em virtude da contaminação radioativa, visando aumentar a capacidade de produção do agronegócio brasileiro, todas as leis ambientais que protegem a Amazônia e o Pantanal são revogadas, assim como são extintas todas as terras indígenas e todas as unidades de conservação situadas nesses biomas. IBAMA e ICMBio são extintos e todo seu efetivo redistribuído para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

Dia 19 de abril de 2021 - Relatórios de ONGs brasileiras e internacionais demonstram que a violência no campo aumentou exponencialmente. Tribos indígenas inteiras foram dizimadas. Ambientalistas assassinados à luz do dia em diversas cidades. Ribeirinhos e populações tradicionais expulsos de suas casas. Não há registro de qualquer ação do governo brasileiro para divulgar, impedir ou mesmo investigar todos esses crimes.

Dia 20 de abril de 2021 - Em coletiva, o Ministério da Saúde informa que o ultimo brasileiro com COVID-19 teve alta médica e que a pandemia foi completamente debelada no país. A população brasileira respira aliviada e, por motivos de segurança policial, o uso de máscaras passa a ser proibido.

Dia 23 de abril de 2021 - Em comemoração ao Dia Mundial do Livro, a Google anuncia que todos os livros de todo o mundo foram digitalizados e estão disponíveis para leitura em qualquer plataforma digital. E ainda que, em virtude dos crescentes problemas ambientais, como forma de preservar as árvores, nenhum livro jamais será impresso e um projeto global de recolhimento destes obsoletos alfarrábios de papel entra em curso, para que os mesmos sejam reciclados até o final do ano. Seguindo a diretriz americana, no Brasil os papeis reciclados por esse projeto serão usados para a confecção das novas cédulas eleitorais para o pleito de 2022. Sem a concorrência chinesa, empresas americanas implementam globalmente a tecnologia 5G para celulares e, graças aos satélites Starlink, a internet está disponível nos mais afastados recônditos da Terra. Até o final do ano, todas as pessoas com mais de dez anos terão um celular inteligente com acesso à internet.

Dia 07 de junho de 2021 - O INPE divulga que os desmatamentos e as queimadas na Amazônia aumentaram mais de 900%, ultrapassando 100.000 km2, número quatro vezes maior desde que o sistema de monitoramento foi criado, em 1988. Nesse ritmo, em poucos anos a Amazônia entrará num processo irreversível de colapso. O Pantanal Matogrossense segue a mesma toada, com mais de 50% da sua área transformada em pasto.

Dia 01 de janeiro de 2022 - Um ano após o atentado, o auto-proclamado presidente interino americano suspende por tempo indeterminado as eleições e se declara presidente vitalício. Com apoio dos EUA, o presidente brasileiro também suspende as eleições que ocorreriam neste ano e também se auto-declara presidente vitalício do Brasil.

Desde o fim das normas ambientais, os desmatamentos e queimadas perdem completamente o controle. O aquecimento global se intensifica, eventos extremos são cada vez mais rotineiros e destruidores. Imensas tempestades e secas jamais vistas são registradas em todo o globo.

Na Antártica e no Ártico se registra um nível de degelo jamais observado. Restam apenas 10% do permafrost e centenas de milhões de toneladas de CO2 são liberados na atmosfera. Em todo o mundo, safras inteiras são perdidas. O preço dos alimentos aumentam absurdamente e a fome passa ameaçar milhões em todo o mundo. No Brasil, o rebanho de gado dobra e a área plantada de soja aumenta 50%. O governo americano segue comprando toda nossa produção. O agronegócio segue crescendo e comemorando.

Ano 2023 - Com o uso desenfreado de agrotóxicos, vários países observam a morte de bilhões e bilhões de abelhas e já neste ano todas as espécies são extintas. Sem a polinização das abelhas, mais e mais safras são perdidas. A produção de frutas tem redução de cerca de mais de 80% em todo o mundo. Ainda, em virtude dos problemas ambientais oriundos da aceleração do aquecimento global, a produção mundial de trigo, milho e arroz tem uma redução de mais de 70%. Grandes fomes voltam a ser registradas na África.

O Brasil desenvolve um projeto pioneiro no mundo e as imensas plantações de soja passam a ser polinizadas por drones americanos. A fome passa a afligir mais de 75 milhões de brasileiros. O rebanho de gado dobra mais uma vez e atinge a marca de 1 bilhão de animais. A área plantada de soja chega a 100 milhões de hectares. O Brasil se firma como o maior produtor mundial de carne de boi e de soja. A área desmatada na Amazônia e no Pantanal ultrapassa o limiar da recuperação natural. O governo americano segue comprando toda nossa produção. O agronegócio segue crescendo e comemorando.

Ano 2024 - Em virtude das quebras de safras em diversas partes do mundo, há um grande aumento no esforço de pesca em todos os países. Frotas pesqueiras gigantescas passam a pescar em águas internacionais e a invadir as Zona Econômicas Exclusivas dos países que não as patrulham com eficiência, como o Brasil. Contudo, cada vez menos peixes são encontrados. Cientistas observam uma grande diminuição do pH da água do mar em virtude do aumento de CO2 atmosférico. Com a acidificação dos oceanos, há um aumento nos eventos de branqueamento de corais em várias partes do globo. A Grande Barreira de Corais entra em colapso. O mesmo acontece no Caribe e no Brasil, especialmente em Fernando de Noronha, Abrolhos e no Atol das Rocas.

Dia 11 de setembro de 2024 - Às 09:11h toda a internet em todo o mundo passa a aparecer em Chinês. Os EUA ficam às cegas e sem controle de todo arsenal, inclusive o nuclear. Às 10:11h, sem qualquer motivo, todos os sistemas do mundo voltam ao normal. No mesmo momento, tiroteios são iniciados em todos os estados americanos. Logo se percebe que em todos eles, chineses que não retornaram à China em 2021 abrem fogo contra alvos militares e que, ao serem alvejados, explodem. Centenas de ataques ocorrem simultaneamente. Às 11:11h, os EUA detectam que dezenas de mísseis foram disparados contra alvos em todo seu território. Todo o arsenal de mísseis Patriot em todo o mundo é acionado. A origem de todas os mísseis é uma só: uma região inabitada da China. Ogivas nucleares são disparadas para lá. Minutos depois, diversas explosões são identificadas na estratosfera e clarões no céu são observados em todo o mundo. Os EUA comemoram, pois os Patriots destruiram os mísseis antes que eles atingissem o solo americano.

Um breve momento de êxtase envolve a todos. Ainda sob os gritos de comemoração, computadores começam a apresentar falhas e em poucos segundos, todos estão apagados. Carros param. Aviões e helicópteros que estavam no ar em todo o mundo caem. Lâmpadas queimam. A internet sai completamente do ar. Celulares param de funcionar, alguns explodem. Todos os aparelhos que tem pelo menos um componente elétrico sofrem danos irreversíveis. Ogivas nucleares atingem a região desabitada na China.

Nesse momento o governo americano percebe que foi atacado por mísseis com tecnologia PEM (Pulso EletroMagnético). E foram exatamente as explosões na estratosfera causadas pelos mísseis Patriot que fizeram com que seu alcance fosse maximizado e que o PEM se propagasse pela Terra. Todo o conhecimento humano digitalmente armazenado é complemente destruído em menos de uma hora. Todas as formas de comunicações globais são destruídas.

Dia 01 de outubro de 2024 - Sem o retorno das comunicações e do funcionamento dos aparelhos elétricos danificados pelo ataque PEM, pessoas surtam e passam a vagar sem rumo pelas ruas em todo o mundo. Ondas de suicídio começam a acontecer em todos os países. Em várias cidades por toda a Terra, cães e gatos passam a enlouquecer e morrem em poucos dias. O mesmo acontece nos pastos da Amazônia e do Pantanal, onde dezenas de milhares de bovinos e suínos morrem em semanas. Como o sistema de comunicação global ainda está inoperante, tais informações não são difundidas e o mundo segue cego, surdo e mudo.

Dia 01 de novembro de 2024 - A morte de animais aumenta de forma exponencial. O número de suicídios também. Milhares de pessoas passam apresentar problemas motores, vindo a óbito em poucos dias. Surge a suspeita de que alguma arma biológica ou química tenha sido utilizada juntamente com o ataque PEM. Em alguns poucos laboratórios ainda operantes, cientistas passam a suspeitar de que se trata de uma infecção por príons, o mesmo agente infeccioso que causou a “Doença da Vaca Louca” na Inglaterra, na década de 1980. Emerge uma grande preocupação médica, pois tal doença não tem cura e apresenta uma taxa de mortalidade próxima a 100% após o surgimento dos primeiros sintomas, tanto em animais, quanto em humanos. Contudo, a mesma foi controlada já década de 1990, ao se descobrir que sua origem decorria do fato de que algumas fazendas utilizavam as carcaças dos animais abatidos para fazer farinha de ossos, que posteriormente era adicionada à ração dos animais que seriam abatidos, num bizarro ato de canibalismo involuntário. Contudo, tal prática foi banida em todo o mundo e não seria possível que a mesma voltasse a ser utilizada.

O que os cientistas não poderiam supor é que, ao cancelar “de baciada” todas as normas ambientais, o governo brasileiro, por ignorância ou má-fé, também revogou as normas que proibiam a utilização de produtos de origem animal na alimentação de ruminantes. Dai, já em 2021, para maximizar os lucros, a farinha de ossos, feita com as carcaças dos animais abatidos, voltou a fazer parte da alimentação do gado brasileiro. Como o rebanho bovino do país passou a ser o maior do planeta, o potencial de globalização dos príons é gigantesco.

Mais ainda, devido à imensa quantidade de animais abatidos, a produção da farinha de ossos é muito superior à quantidade utilizada nas rações, de modo que, para se livrar do excesso, a mesma foi adicionada à farinha de soja, que passou a ser vendida como “enriquecida com cálcio”. Com as quebras globais das safras de trigo, arroz e milho, a farinha de soja passou a ser utilizada nos mais diversos alimentos em todos os países, inclusive por vegetarianos e veganos, que sequer desconfiavam da origem do cálcio. E o Brasil também é o maior produtor de soja da Terra.

Mas, ninguém no mundo sabia disso. Provavelmente ninguém no Brasil também o sabia. E, com as comunicações globais interrompidas por sabe-se lá por quanto tempo, fez-se a tempestade perfeita.

Com os governos inoperantes desde o ataque PEM e os sistemas de saúde e de segurança completamente inoperantes, o caos se instala em todas as grandes cidades do mundo. Devido à altíssima letalidade dos príons, pessoas e animais passam a morrer aos milhões em todos os locais. Cadáveres se acumulam e passam a ser queimados. Diversas outras doenças infecciosas passam a afligir os sobreviventes.

Antes do final de 2024, todo o tecido social é destruído e todas as sociedades ruem. A humanidade está praticamente extinta. 

Rio de Janeiro, após um longo e indeterminado tempo - Sobreviventes se encontram e formam pequenos grupos, que vão aumentando com o tempo. Raros são os sobreviventes sem nenhuma sequela neurológica, a maioria é afligida por déficits cognitivos e problemas na fala.

Ninguém sabe ao certo o que se passou, apenas lembram que as mortes se iniciaram depois que o céu explodiu e as máquinas pararam de funcionar. Sobreviventes passam a se chamar de “Imunes” e qualquer um que seja suspeito de estar contaminado é tido como “estragado” e, por medo de contágio, sumariamente executado e seu corpo imediatamente queimado. 

Com o aumento do número de sobreviventes, em pouco tempo surge uma liderança natural, que se auto-proclama “Imune 01” e passa a governar a cidade, que já conta com mais de 1.000 pessoas.

Com receio de que “estragados” ainda possam contaminar a comunidade, os novos sobreviventes tem que passar por uma quarentena e somente após ela, são aceitos na comunidade. As execuções de “estragados” só podem ocorrer com autorização do “Imune 01”, que somente as aprova caso a junta médica ateste a contaminação.

Há abundância de alimentos industrializados, que passam a ser armazenados e distribuídos de forma controlada para todos. Contudo, alimentos frescos ainda são raros. Pequenas hortas comunitárias são cultivadas. Animais passam a ser criados em locais próximos, pois, sem ter como resfriar e armazenar as carnes, os mesmos são abatidos e assados na hora, em plena rua, a céu aberto, pois as refeições são coletivas.

Grupos de exploradores saem à procura de sobreviventes, alimentos e remédios em regiões ainda inexploradas. Nenhum sobrevivente é encontrado há muito tempo. Um grupo de exploradores atravessa a Ponte e pela primeira vez vai a Niterói. Após dias de buscas sem ninguém encontrar vivo, o grupo se depara com uma mulher, que ao vê-los, foge para a mata. O grupo a persegue e em pouco tempo a alcança. O chefe diz, de forma calma, que vieram em paz e que não farão mal a ela, que há uma comunidade de “Imunes” no Rio de Janeiro e a questiona sobre outros sobreviventes. Inicialmente ela não entende o que eles dizem, pois parecem estar falando em outro idioma, mas, aos poucos, vai se acostumando. Perguntam qual seu nome e aonde ela mora. - “Meu nome é Halisi, toda minha família morreu, há anos não vejo ninguém vivo e moro sozinha aqui na mata.”

Halisi é a filha mais nova de uma grande família quilombola. No dia 01 de janeiro de 2021, um dia antes do seu aniversário de 10 anos, viu o porco que seria utilizado para fazer a feijoada da sua festa ser abatido e ficou em estado de choque. No dia seguinte,  de forma irredutível, decidiu que nunca mais iria comer a carne de nenhum animal. Meses depois Halisi passou a vomitar todos os dias e a ter sérios problemas de saúde. A família insiste que ela volte a se alimentar direito. Ela nega. Após algumas consultas médicas, Halisi é diagnosticada como tendo alergia à soja e, ao interromper sua ingestão, volta a ter uma saúde perfeita, mesmo sem comer qualquer animal.

Halisi aceita seguir junto com o grupo para o Rio de Janeiro. Antes de retornarem, o grupo pergunta se podem colher as cenouras que ela havia plantado. Halisi estranha, pois jamais plantou cenouras, mas diz que eles podem colher toda a roça de mandioca. O grupo não entende o que ela quis dizer, mas retiram todas as plantas do chão e as levam para a cidade.

O retorno é lento. Dois mensageiros seguem na frente, para avisar ao governador que uma sobrevivente havia sido encontrada. Durante o percurso, Halisi vê um pequeno boi vagando e logo depois, um pequeno grupo de porcos. Ninguém do grupo presta atenção nesses animais e Halisi, inocentemente, passa a crer que talvez essa nova sociedade tenha parado de comer animais.

Ao chegar à cidade, uma grande festa a espera. Centenas de pessoas pelas ruas enfeitadas. Uma pessoa lhe oferece um pedaço de pão que acabou de ser assado. Faminta, não comia pão há anos, o devora de forma inconsequente. Poucos metros adiante, se depara com uma cena que a deixa apavorada. Um imenso braseiro com dezenas de animais mortos sendo assados. Ao lado, outros animais estão sendo abatidos com machados, cortados em pedaços e colocados sobre as brasas. As pessoas alegremente comem em comemoração à chegada da nova sobrevivente.

Halisi entre em pânico e começa a berrar: - “Loucos!!! Assassinos!!!”

Todos se assustam com os gritos e as palavras desconexas ditas por ela. Poucos metros à frente, o “Imune 01” a aguarda para dar as boas vindas e presencia toda a cena. A poucos passos do governador, ainda ao berros, Halisi começa a vomitar. O pânico se instaura, todos se afastam dela. Seguranças retiram o governador às pressas. Halisi é contida com uma rede e imediatamente levada para o isolamento.

Ao chegar naquele estado, ainda berrando palavras desconexas e vomitando, a junta médica é unanime em declara-lá como “estragada”. O governador autoriza a execução imediata, que só não ocorre no mesmo dia devido ao caos provocado. Como ninguém é executado há tempos, uma imensa pira será erguida e dessa vez, a “estragada” será queimada viva.

Ao amanhecer, toda a cidade já está ao redor da pira. A festa é ainda maior, pois a doença foi descoberta antes que todos fossem contaminados e agora todos querem ver a “estragada” ser queimada viva. O carrasco a conduz ao alto da pira. Lá de cima, Halisi mais uma vez se depara com a cena dos animais sendo mortos a machadadas e colocados para assar. Mesmo ainda se sentindo mal pela intoxicação por soja que sequer sabia que havia ingerido, não se contem e volta a berrar: - “Loucos!!! Assassinos!!!”

A multidão fica descontrolada e passa a gritar: - “Queimem a “estragada”!!!”

Ao amarrar Halisi, o carrasco vê um pequeno objeto cair de suas mãos. Ao pegá-lo, percebe que se trata de um pequeno livro infantil, coisa que não via há anos. Com dificuldade lê o título: “Animais da Fazendinha da Vovó”. Memórias de sua infância surgem em sua cabeça, ele abre o livro e vê os desenhos infantis com o nome dos animais: boi, porco, galinha, cavalo, cão, gato. Um susto o acomete imediatamente e o livro cai ao chão. 

Nesse momento o carrasco percebe o quão a loucura é grave. Num instante ele entende que a doença faz os “estragados” mudarem as palavras, fazendo-os chamarem de cães nossos bois e de bois nossos cães, de gatos nossos porcos e de porcos nossos gatos! Dai, num breve lampejo de insensatez, pensa: - “E se for o contrário?! E se antes  o mundo fosse completamente diferente do que o mundo é agora?!”. E gela com seu pensamento. Talvez seja ele um “estragado”! Talvez todos da comunidade sejam “estragados” e somente Halisi seja uma verdadeira “Imune”! Um medo monstruoso lhe corrói a mente e um frio intenso percorre todos seus sentidos. Sem muito tempo para refletir, ouvindo os gritos da multidão, ateia fogo no pequeno livro e, antes que mais pensamentos perturbadores lhe intriguem, o joga na imensa pira para queimar a “estragada” viva. Ao ouvir seus gritos de “assassinos loucos” e ver que as chamas já queimam sua carne, agora aliviado, diz com convicção:

São só palavras!

***

Carlos Magno Abreu, mais conhecido como Batata, é mestre em biologia marinha, analista ambiental do IBAMA desde 2003, eventualmente escreve em seu blog SomosUnsBossais e pretende, sem muita convicção, antes do final de 2021, terminar de escrever o livro Do Prato ao Pranto: o norte vegano, a Amazônia em chamas e a pandemia”. Em 2013 publicou o livro O Brasil na Rota do Tráfico Internacional de Animais Silvestres – A História da Operação Boitatá e a Serpente de Um Milhão de Dólares”

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