sábado, 2 de dezembro de 2017

FUI ESTUPRADO!!! Relatos em primeiro plano sobre a Cultura do Estupro.

FUI ESTUPRADO!!!
     Há dias não durmo direito! Há dias não me alimento direito! Há dias sou consumido por um ódio insano que clama por uma vingança extrema! Há dias tento manter calmos os demônios que habitam minha mente! Há dias temo não ser forte o suficiente para contê-los! Há dias sonho em deixá-los livres para fazerem o que quiserem! Há dias presencio eventos de pânico! Há dias converso com amigos e amigas! Há dias discuto com falsos amigos e falsas amigas, que já se vão muito mais tarde do que deviam! Rotina de delegacias, depoimentos criminais, busca de provas e leituras de textos sobre o assunto! Há dias encaro essa sociedade absurdamente machista e seu maior aliado, a Cultura do Estupro. Contudo, pela primeira vez em minha vida, em primeiro plano.
  E nem fui eu a vítima do estupro e das agressões!
  Dois estupros e uma agressão. E ameaças, muitas ameaças. Tudo perpetrado por um pretenso amigo de todas. Outras agressões, até o momento mais brandas, estão aparecendo. Outras vítimas também. Não se sabe ainda a real extensão do dano causado, mas com certeza ele não é pequeno.
  Até o momento, três vítimas conhecidas, um agressor, apenas uma denúncia!
     A bem da verdade, nem foram estupros e agressões das “mais bizarras” que diariamente vemos pelas redes sociais e que acabam por nos insensibilizar com a barbárie cotidiana. Tivesse o mesmo ocorrido antes de 07 de agosto de 2009, data na qual foi publicada a Lei no 12.015, que altera as definições sobre os “Crimes Contra a Liberdade Sexual”, sequer seria enquadrado como estupro, embora seja absolutamente claro que ninguém, seja homem ou mulher, inclusive o próprio agressor, gostaria de passar pelo mesmo, sem o necessário e óbvio consentimento prévio.
  E essa barbárie cotidiana tem um alvo bem específico: MULHERES!!! Quase que exclusivamente MULHERES!!! Pra ser mais preciso, o SEXO FEMININO, pois ADOLESCENTES e CRIANÇAS também são vítimas das mesmas agressões! Impressiona a quantidade de crimes contra menores de idade, inclusive crianças, fato que coloca em cheque, cheque-mate na minha opinião, as constantes argumentações de que somos uma espécie inteligente e que evoluímos muito nas ultimas décadas.
  Contudo, embora o SEXO FEMININO seja o alvo quase que exclusivo desta verdadeira atrocidade humana, isso não impediu que eu me senti-se absolutamente violado. E não violado por analogia, verdadeiramente violado!
  Se não fui a verdadeira vítima do estupro e das agressões, senti verdadeiramente na pele as consequências do, como dito nos textos feministas, segundo estupro! Presenciei o choro convulsivo da vítima. Presenciei seu medo real de tomar alguma atitude. Presenciei seu medo real de não tomar nenhuma atitude. Sofri com suas duvidas e questionamentos sobre se o que tinha acontecido realmente tinha acontecido. Sofri com seu questionamento se a culpa não seria dela. 
  Mas, mais cruel do que tudo, no momento de maior fragilidade que uma mulher pode se encontrar, presenciei o olhar acusatório de inesperados falsos amigos e amigas. Presenciei falsos amigos e amigas as acusando de serem “muito loucas”, de “beberem demais”, de “se vestirem de forma inadequada”, de “induzirem o estupro” e o pior, de que caso as vítimas denunciassem o acusado, que o mesmo poderia ser preso e que essa responsabilidade seria delas! Não só a culpa do estupro recai sobre a própria vitima, como a culpa por colocar seu agressor na cadeia também.
  Presenciei isso de pessoas das quais tal atitude sequer me surpreendeu. Mas também presenciei isso de pseudo-feministas de Facebook, que se diziam amigas das vítimas, mas optaram por ficar ao lado do amigo agressor. Embora jamais tenha sofrido as agruras de qualquer estupro ou mesmo de qualquer violência contra minha dignidade sexual, tendo a acreditar que tal dor emocional deva superar, em muito, a dor das agressões sofridas.
  Imagino que em casos de violência sexual, qual no caso de acidentes automobilísticos, negar os primeiros socorros, abandonando a vítima no momento de maior dor e sofrimento, seja a coisa cruel que se possa fazer a uma amiga. E de nada adiantará pedir desculpas meses depois, quando a mesma já estiver recuperada. Também de nada adiantará dizer que não foi tão grave assim, pois acontecem casos muito piores todos os dias. Assim fosse, não importaria o ocorrido, qualquer que seja a sua dimensão, pois sempre há casos piores. Não importaria que uma adolescente foi estuprada por 33 criminosos, pois no dia seguinte, em algum lugar do mundo, uma adolescente mais nova foi estuprada por um número maior de criminosos. Cada um sabe o quanto sua dor dói e cabe ao amigo ou amiga, mesmo sem a exata dimensão do que ocorreu, acolher e confortar a vítima, nunca se posicionando ao lado de seu algoz, sob a desculpa de que o que ele fez sequer foi tão grave assim.
  Vi vítimas com seu âmago violado, sendo abandonadas pelos amigos mais próximos no momento de maior fragilidade da sua vida. Não só negando o necessário aconchego feminino nos momentos que se seguiram à agressão, como culpabilizando a vítima, pelos atos do agressor e ainda defendendo-o, seja diretamente, seja por não querer escolher nenhum dos lados, como se tal escolha fosse uma possibilidade. Foi-se “A neutralidade ajuda o opressor, nunca o oprimido. O silêncio encoraja o atormentador, nunca o atormentado.”!
  Vi as vítimas, mulheres de luta, fortes, independentes e empoderadas, ficarem cabisbaixas, vulneráveis e se comportarem como se realmente fossem elas as culpadas pelos atrozes atos de seu algoz.
  Contudo, entendo a fraqueza momentânea das vítimas. Pelo menos, tento entendê-la. Pois jamais passei, e provavelmente jamais passarei, por sofrimento semelhante.
  Não entendo, e sequer farei qualquer força para entender, os que defendem o agressor. Até porque todos o conhecem e sabem que o mesmo faz isso há anos. Em tese com menos gravidade, contudo, exatamente por essas atitudes condescendes com tal comportamento, criou-se um monstro. Mas um monstro que, aos olhos dos que o defendem, “é um cara gente boa”. Foi-se o “Todos são iguais perante a lei.”!
  Vi pseudo-feministas, mães e pais de meninas, se auto-proclamando estarem do lado do bem e da justiça, para defenderem o agressor. E tal defesa se deu, basicamente, porque as vítimas tiveram a desfaçatez e a sem vergonhice de ingerir álcool ao lado de seu agressor. De se vestir de forma inadequada ao lado do agressor. De dançarem de forma inadequada ao lado do agressor. Será que tais condutas, por eles definidas como mínimas, seriam assim entendidas se as mesmas fossem perpetradas contra eles próprias?! Ou contra suas filhas?! Tenho a certeza mais do que absoluta que não! Foi-se “A culpa nunca é da vítima”!
  Vi mulheres de luta e da luta, calarem seus cânticos de guerra de Facebook, baixarem suas armas e virarem às costas para para as vítimas por picuinhas pessoais dignas das piores novelas mexicanas. Foi-se o “Mexeu com uma, mexeu com todas”!
  Vi mulheres que já foram agredidas dizerem “Eu também já apanhei e não fiz nada”. Vi mulheres dizerem “daqui a pouco passa, basta você se afastar dele”. Foi-se o "Você vai se arrepender de levantar a mão pra mim”!
  Ouvi comentários do tipo: “Ah, mas você dançou com ele!", “Porque você não reagiu? Porque eu tava muito bêbada! Tá vendo, quem mandou beber tanto perto dele?!”, “Você não lembra direito, vai ver na hora você queria e agora se arrependeu!”, “Ah, mas foi só isso?! Você já fez coisa muito pior com nãoseiquem!”. Sob essa ótica doentiamente distorcida, a necessidade do sexo ser consentido por todas as partes é banida, caso uma mulher beba, dance ou se vista de forma inapropriada! Foi-se o "Meu corpo, minhas regras"!
  Vi coisas que não queria ver!!! Vi coisas que jamais esperaria de pessoas que, face ao discurso e ao Face, me pareciam aliadas. Vi diversas delas viraram as costas às vítimas e defenderem ferozmente o agressor. Parafraseando a filósofa Angela Davis: “Numa sociedade machista, não basta não ser machista. É necessário ser anti-machista. É necessário ser contra seu maior aliado, a Cultura do Estupro”!!! Não basta ser a favor da causa, há que se lutar por ela. Lutar efetivamente, não apenas curtir e publicar coisas no Facebook.
  Mas, pior de tudo, quando saia da Delegacia da Mulher, vi uma criança, pequena e mirrada, aparentando menos de 12 anos, entrar logo depois, para denunciar seu próprio estupro! Sozinha! Pelas estatísticas, provavelmente foi vítima algum parente próximo. Pelas estatísticas, provavelmente foi expulsa de casa ao relatar isso para a mãe ou alguém próximo. E, ainda assim, entrou sozinha numa Delegacia! E ainda assim, enfrentou todo o mundo, sem sequer ter as armas mínimas para tal! Provavelmente sem sequer ter um lugar para ir depois que sair dali. Sozinha! Uma criança! Lágrimas não haviam em seus olhos. Infelizmente, inocência também não. Apenas a dor de uma infância roubada e destruída. Mas aparentemente a dor a cobriu de forças e lá estava ela, em uma delegacia de polícia, para denunciar o estupro que lhe foi imposto. Um estupro que, ao invés de aniquilá-la, precoce e infelizmente a transformou numa guerreira menor de idade! Sozinha!
  E nós, adultos brancos ricos cis nível superior completo, repletos de amigos iguais e sem qualquer preocupação com a próxima refeição, habitantes de uma bolha de segurança e prosperidade, ainda nos reservamos o direito de escolher se devemos ou não fazer o que sabemos ser o certo. De esperar “a ficha cair”. Alguns sequer se aventuram no mundo da vida real, pois não basta a segurança desta bolha, ainda precisamos da segurança da bolha do Facebook.
  Enquanto isso, uma criança, entra na Delegacia da Mulher para denunciar seu estuprador. Sozinha!!!
  Mas, “pra não dizer que não falei das flores”.
  Na Delegacia da Mulher, fomos prontamente atendidos por um investigador, que embora do sexo masculino, nos atendeu de forma cordial e respeitosa. Perguntas absurdas, do tipo: “Você tinha bebido muito? Qual roupa você estava usando? Você dançou de forma sensual próxima ao acusado?”, sequer foram feitas. Nenhum comentário ou juízo de valor sobre o comportamento da vitima foi feito. Em poucos minutos, após um breve relato dos fatos, a Delegada, uma mulher forte e empoderada, enquadrou o delito como estupro e no mesmo momento, mandou uma viatura ir buscar o acusado em casa, para que o mesmo viesse prestar os devidos esclarecimentos. 
  Embora não seja o correto, ao perceber que acusado havia adentrado à Delegacia, o enfrentei, infelizmente com muito menos violência que meus demônios clamavam, mas o suficiente para que ele entenda que deste dia em diante, sou seu inimigo. E assim me manterei até o fim dos meus dias! Mesmo que após o cumprimento da sua devida pena, caso a mesma seja decretada pela justiça, ele venha a se arrepender, coisa que duvido muito, e que, mesmo que venha a acontecer, sequer me darei ao trabalho de ouvir.
  Conversei com diversos policiais militares do patrulhamento ostensivo. Todos, absolutamente todos, mesmo os que, por insensibilidade do ofício, já são descrentes dos atos judiciais, me recomendaram serenidade e força para não fazer nada precipitado e aguardar o devido pronunciamento da justiça.
  Conversei com muitas amigas, algumas amigas há décadas, e só agora soube dos muitos abusos que muitas delas sofreram. Muitos ainda na infância. E muitos outros durante a adolescência e a vida adulta. E que ainda sofrem. Laços fortes com pessoas verdadeiramente do bem foram apertados de uma forma que jamais imaginei ser possível. O sofrimento nos uniu. O inimigo comum nos uniu de forma definitiva.
  Não quero que minha sobrinha cresça e viva numa sociedade onde tais valores são aceitos. Aceitos inclusive por pais e mães de meninas. Aceitos por mulheres ditas feministas. Aceito por mulheres fortes e empoderadas, que viraram as costas para as vítimas, para ferozmente defenderem o pobre agressor, que, segundo sua lógica absurdamente machista, foi induzido pelas próprias vítimas a praticar tais atos, mesmo contra a vontade delas. Não quero que a filha de uma amiga, que foi abusada aos sete anos, também passe por isso. Muito menos que passe pelos outros diversos abusos que sua mãe passou. Não quero que num futuro próximo, as jovens de hoje venham a relativizar tapas na cara dados por seus “crushes” e os considerem coisa normal. 
  Não desejo viver numa sociedade onde obviedades precisem ser ditas como gritos de guerra!!! “Não é não”! “Meu corpo, minhas regras”! “A culpa nunca é da vítima”! NUNCA! Que em algum momento tais frases sejam esquecidas, pois não haverá qualquer outra forma de pensar que não essa, a óbvia, que cada pessoa é dona do seu próprio corpo e que qualquer outra pessoa, só pode fazer qualquer coisa que seja com esse corpo, mediante expressa autorização da dona do corpo. Sem que a roupa seja uma desculpa. Sem que o estado de embriaguez seja desculpa. Sem que o comportamento, lido como permissivo, seja desculpa. 
  Ninguém justifica que arranhou um carro, simplesmente porque ele não tinha um adesivo escrito "não arranhe”. Ninguém justifica que entrou num carro, que não é dele, simplesmente porque o mesmo estava com as portas abertas! Se o carro não é seu, você não tem o direito de entrar sem a expressa autorização do dono, mesmo que ele esteja ligado e com todas as portas abertas. Qual a dificuldade de se entender isso?! E caso você, adulto capaz, resolva entrar nesse carro, sem a devida autorização do seu dono, que arque com as consequências deste ato. Não importa se você estava embriagado. Não importa se você deu só uma voltinha no quarteirão e o deixou exatamente no mesmo lugar, sem nenhum arranhão. Não importa se, após essa breve voltinha, você, que se acha uma pessoa do bem, percebeu que o tanque estava quase vazio e o encheu de combustível, pagou por uma lavagem completa e ainda calibrou os pneus, sem cobrar nada do dono. Nada, absolutamente nada disso pode ser feito, se o carro não for seu, sem o consentimento expresso do seu dono. Porque com nossos corpos isso seria diferente?! Nossos corpos não, os corpos das mulheres!!! Porque com os “nossos” corpos, isso não acontece.
  Essa merda tem que parar!! Não devia nem existir, mas já que existe, tem que parar!!! Não só pela minha sobrinha, pelas minhas amigas, pelas filhas das minhas amigas, por todas as mulheres que jamais conheci ou conhecerei, mas por essa criança, que do mais absurdo ato de barbárie, que precocemente lhe roubou sua infância, se transmutou numa guerreira precoce de uma guerra que ela sequer deveria ser obrigada a entrar.
  Como dito por Hemingway: 
"- Quem estará ao teu lado nas trincheiras?!
- E isso importa?
- Mais que a própria guerra!!!
  Para sempre ficarei ao lado das vítimas. Ficarei ao lado desta criança, que sequer devia estar nas trincheiras, mas já ela aqui foi jogada por essa absurda Cultura do Estupro, prefiro mil vezes estar ao seu lado do que ao lado dos que tentam justificar os atos de seu agressor. Mil vezes tombarei ao seu lado, antes de sequer pensar em mudar de lado!
  Se eles querem meu sangue, terão o meu sangue só no fim. E se eles querem meu corpo, só se eu estiver morto, só assim”. 
  E tenho a mais absoluta certeza de que sequer sou protagonista nessa luta. Mas nela me manterei até o fim.
  Que se fodam os agressores de mulheres e todos os que optaram por ficar ao seu lado!!! 
  Não passarão!!!
***

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