quinta-feira, 12 de maio de 2016

"Por trás do Couro": A Nefasta "Beleza" da Crueldade.

Há poucos dias foi divulgado o vídeo “Behind the Leather” (http://www.petaasia.com/skinsen/), produzido pela ONG PETA (People for the Ethical Treatment of Animals ). Trata-se de uma campanha sobre a utilização de couro pela industria da moda. Achei o vídeo sensacional e o compartilhei no Facebook. Contudo, alguns comentários, embora respeitosos e feitos por pessoas bem intencionadas, me fizeram pensar um pouco mais sobre o assunto e por consequência escrever esse texto, pois muitas das duvidas e dos reais questionamentos também já foram feitos e defendidos por mim, durante as mais de quatro décadas nas quais comia carne e produtos derivados de animais várias vezes por dia, todos os dias e sequer conhecia termos como especismo, igual consideração de interesses e libertação animal. 

Embora o vídeo trate basicamente da utilização do couro de animais "exóticos" (cobras, jacarés, crocodilos, dentre outros), um dos mais comuns questionamentos é sobre a utilização do couro de bois mortos pela industria da carne e que sua não utilização seria um desperdício sem sentido. Também já fui um defensor desse argumento e me parecia óbvio que, já que um animal foi morto, todos os produtos oriundos dele deveriam ser totalmente aproveitados. 
Contudo, por mais estranho que possa parecer, o couro bovino utilizado pela industria da moda, não é o mesmo couro oriundo da industria da carne. São bois diferentes, criados de forma diferente e abatidos de forma diferente (documentário “Terráqueos" http://www.terraqueos.org). Segundo a PETA, a indústria de peles mata anualmente cerca de um bilhão de animais e a maioria do couro utilizado na Europa e nos Estados Unidos são oriundos da India e da China. Obviamente o couro produzido pela industria da carne também é aproveitado, mas como um subproduto, em revestimento para mobiliário, tapetes, sapatos e solados, dentre outras utilizações.
Mas será que o fato de comermos a carne do animal morto é justificativa ética suficiente para a utilização de seu couro ou pele? Existe alguma diferença ética entre usar um casaco de couro de boi, uma bota de couro de cobra ou um casaco de pele de filhotes de focas? E se comêssemos a carne das cobras, dos jacarés e dos crocodilos do vídeo, isso justificaria suas mortes, que tiveram como causa o valor em dinheiro das suas peles? Mais ainda, e se comêssemos a carne dos bebês de foca abatidos para se fazer casacos, isso justificaria suas mortes? E se não fossemos nós que comêssemos, mas suas carcaças fossem utilizadas para a confecção de ração para animais, isso justificaria suas mortes? Na China existe o hábito de se comer cães e gatos, no Japão e na Noruega de se comer baleias, portanto, seria éticamente justificável se utilizar a pele desses animais para confecção de roupas ou acessórios da moda? E se tais vestimentas fossem exportadas para o Brasil, não causariam espanto, mesmo tendo sido obtidas como subprodutos de animais abatidos para servirem de alimento?
Não obstante o corriqueiro tratamento cruel que esses animais sofrem no cativeiro, vale lembrar que a transformação do que antes era a pele de um ser  vivo, em um produto como o couro, que é praticamente indestrutível e, como gostam de falar seus vendedores, dura para sempre, está longe de ser trivial, sendo necessária a utilização de diversos produtos químicos tóxicos e pode-se dizer, com certeza quase absoluta, que os curtumes  são um dos lugares mais insalubres de todo o planeta. E os que lá trabalham, o fazem por não terem qualquer outra expectativa de obter qualquer renda com o mínimo de dignidade, sendo também absurdamente explorados por essa industria. Consequentemente, diversos impactos ambientais são causados pelos curtumes e o descarte de seus efluentes. Via de regra, quem pouco se preocupa com o sofrimento animal, pouco se preocupa com o sofrimento humano e se preocupa menos ainda com os impactos ambientais da sua atividade.
Mas, não há que se pensar a descrição acima é absoluta e estática, de modo que modernizações com a utilização de maquinários e adequações às normas ambientais ocorreram em alguns locais, contudo, face à brutal transformação dos materiais e a necessária utilização de diversos produtos químicos tóxicos, inerentes à própria atividade, também não há como se garantir um total afastamento do referido cenário, que embora passível de melhorias, ainda traz em seu âmago, o processamento de grande quantidades de peles de animais mortos, mesmo quando já existem diversas outras opções para o referido produto, inclusive “couro” vegetal.
Outro argumento, agora com um viés capitalista, contra a utilização do couro ou de outros subprodutos de origem animal, é o de diminuir o valor agregado destes para a industria que se beneficia da sua exploração, a partir do momento que um boi, ou qualquer outro animal criado para o abate, vale mais do que meramente o valor da sua carne, pois diversos dos seus subprodutos também são vendidos, aumentando assim o retorno financeiro desta atividade. Assim, ao optar-se pelo não consumo de seus diversos e “desnecessários” subprodutos, faz-se com que a atividade seja menos rentável e portanto menos atraente do ponto de vista capitalista, fato que poderia ajudar a contribuir para a redução de sua escala, auxiliando no processo de minimização do sofrimento animal, coisa que tenho convicção que mesmo os que comem carne também não desejam.
No mais, independentemente de qualquer argumento e da sua motivação, independentemente das condições a que foram submetidos os animais e os trabalhadores responsáveis por essa transformação, independentemente das suas consequências ambientais, o fato é que o vídeo se atém a uma única, simples e indissociável verdade absoluta: antes de ser transformado em couro, atrás do mesmo, havia uma vida! Uma vida inseparável desta pele e que só se mantinha através dela. Havia um animal que respirava, que tinha um coração pulsante! Que tinha vísceras, tecidos e sangue! Exposta esta dura, cruel e imutável verdade, cabe a cada um, em função do seu arcabouço de valores morais e éticos, decidir pela sua utilização ou não.
Eu, fico com a assinatura da petição ao final da campanha (“Pledge That the Only Skin You're in Is Your Own”), pois tenho total convicção sobre a veracidade desta afirmação: “Cada pedaço de pele de animal, não importa o quão pequeno seja, representa o intenso sofrimento de todos os animais que são mortos para se fazer roupas. Cada casaco de pele, cada sapato de couro, cada carteira de pele de cobra - são a mesma coisa, porque essa pele é deles, não nossa” (“Every bit of animal skin, no matter how small, represents the intense suffering of all animals who are killed to make clothing. Every fur coat, every leather shoe, every snakeskin wallet—it's all the same because it's their skin, not ours.”) 
Carlos Magno Abreu
É vegetariano, quase vegano,
analista ambiental do IBAMA,
aluno de doutorado da UFF e
autor do livro “O Brasil na Rota do Tráfico Internacional de Animais Silvestres – A História da Operação Boitatá e a Serpente de Um Milhão de Dólares

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