quarta-feira, 5 de junho de 2019

Relatos Selvagens sobre o mais distópico Dia do Meio Ambiente.

Por Carlos Magno Abreu (Batata)

Em recente artigo sobre o atual governo, a jornalista Eliane Brum questiona:
- “Como pesca um pescador sem rio?”
Em vídeo divulgado no Dia da Mata Atlântica (27 de maio), a “Fundação SOS Mata Atlântica” questiona:
- “O que mata a mata?
- Desmatamento ilegal, mata. Poluir nossos rios e mares, mata. Reduzir a fiscalização ambiental, mata. Afrouxar leis ambientais, mata. Enfraquecer o IBAMA e o ICMBio, mata. Flexibilizar a aplicação de multas por danos ambientais, mata. Leiloar blocos de petróleo em ecossistemas importantes, mata. Impedir a participação social, mata. Não refletir sobre isso mata. Não se engajar nessa luta, mata.” 
Sou Analista Ambiental do IBAMA há mais de 15 anos e, qual todos os que estudam, investigam e se preocupam com o Meio Ambiente, numa quase unanimidade óbvia e ululante, tenho convicção e provas, de que vivemos tempos absolutamente distópicos, que beiram o realismo fantástico dos filmes B de ficção cientifica pós apocalíptica. 
Ainda nem terminamos o primeiro semestre do novo governo e já alcançamos níveis alarmantes de desmatamento ilegal da Amazônia, no entanto, as operações do IBAMA contra tais crimes foram reduzidas em mais de 30% e algumas são divulgadas antes mesmo de ocorrerem. A Secretaria de Mudanças do Clima e Florestas foi extinta já na primeira semana de janeiro. O CONAMA teve mais 75% dos seus membros destituídos. O Serviço Florestal Brasileiro saiu do Ministério do Meio Ambiente e foi deslocado para o Ministério da Agricultura. Criou-se uma celeuma absurda com o Fundo Amazônia e os principais países, que contribuem com bilhões de reais, ameaçam suspender seu apoio. O Código Florestal vem sendo revisto com possibilidades de anistia a antigos autuados. Há um projeto de lei que visa acabar com a reserva legal de todas as propriedades rurais. Agentes do IBAMA e ICMBio são rotineiramente desqualificados pelo Presidente do Brasil e pelo Ministro do Meio Ambiente. Como diferente não poderia deixar de ser, todos esses fatos tem o condão de aumentar ainda mais os alarmantes níveis de desmatamento da Amazônia, que já são os maiores em uma década e se encontram em franca ascensão.
Mas não é só, aventa-se a possibilidade de se retirar radares de estradas federais, aumentando os riscos à vida humana e o número de animais silvestres que serão atropelados, sendo que esse número já atinge a impressionante cifra de quase 500 milhões de mortes por ano. Agrotóxicos são liberados em velocidade recorde, mais de 100 em cinco meses, não obstante a constatação científica dos efeitos de diversos deles na morte de bilhões de abelhas, cabendo salientar que mais de 75% do que comemos são por elas polinizados. A Rússia ameaçou parar de comprar soja brasileira em função da grande quantidade de venenos aqui utilizados, de modo que não quer alimentar sequer seu gado com esses grãos. Indo de encontro à analise técnica, liberou-se a venda de blocos para a exploração de petróleo nas proximidades do Parque Nacional Marinho de Abrolhos, que, além de abrigar espécies únicas em todo o planeta, serve de refúgio para alimentação e reprodução de outras tantas espécies ameaçadas de extinção, como baleias e tartarugas marinhas, com riscos de danos catastróficos a toda essa biodiversidade caso ocorra qualquer acidente com derramamento de óleo no mar. 
A distopia das atitudes governamentais ainda no primeiro semestre é tanta, que pela primeira vez na história brasileira, sete ex-Ministros do Meio Ambiente se reuniram para escrever uma carta aberta ao governo, alertando sobre o desmonte da área ambiental e os diversos equívocos dos rumos que estão sendo impostos ao país. O mesmo o fizeram três grandes juristas do Direito Ambiental, assim como diversas outras entidades representativas da sociedade civil. O jornalista André Trigueiro elencou 15 pontos sobre nossa atual e desastrosa política ambiental. Mas os ouvidos do governo continuam moucos e insensíveis.
Diuturnamente temos sido bombardeados por essa absurda miríade de agressões contra a natureza, numa aparente cruzada bélica contra o meio ambiente, por todos os flancos possíveis, que somente se justificariam se o mesmo fosse tido como nosso pior inimigo, como se tivéssemos a única intenção de destruir tudo, de forma rápida e definitiva, como se toda nossa mega biodiversidade animal e vegetal fosse uma maldição, o mal a ser vencido, num rumo frenético e desenfreado à vida moderna na tão sonhada Passargada dos países do Primeiro Mundo. Ledo engano?!
Há cerca de dez anos, em uma grande operação na Amazônia me deparei com um cachorro em condição de rua em estado crítico, absolutamente magro, sem qualquer pelo, com escaras por toda a pele e com os dois olhos destruídos. Tentei pegá-lo, mas ele fugiu. Face à necessidade de dar prosseguimento à operação, que contava com a participação de outras forças, tive que me engajar na mesma. Dias depois, mais uma vez me deparei com esse cachorro, dessa vez o peguei à força e, mesmo sendo mordido, consegui levá-lo a uma pequena loja de produtos veterinários, para que ele pelo menos fosse alimentado, lavado e medicado da melhor maneira possível, pois não havia nenhuma clinica na localidade. Resumindo essa longa história, o adotei e ao final da operação, alterei meu voo, fiz uma parada no Rio para interná-lo na veterinária que levo meus outros cachorros e de lá retornei ao aeroporto para outra operação no sul do país. Mas porque toda essa história sobre um cachorro abandonado resgatado na Selva Amazônica?
O referido cachorro foi por mim chamado de Selva e ainda hoje se encontra sob minha tutela. Contudo, embora tenha se recuperado completamente, face o passar dos anos, hoje o Selva já está bastante idoso, recentemente ficou cego, tem sérios problemas no coração e atualmente, mesmo após uma recente operação, bravamente luta contra um câncer. Porém, na medida do possível, segue seus dias sendo bem cuidado e sem sofrimento mas, por mais doloroso que possa ser para mim, Selva está se dirigindo para o fim de sua vida. Mesmo assim, jamais sequer aventei a possibilidade de abandoná-lo, de desistir da luta ou abreviar sua existência. Enquanto há vida, há esperança e há que se lutar sem esmorecer. Como recentemente disse o Mujica: “a única luta que se perde é a que se abandona”.
Muitas analogias podem ser feitas entre “O” Selva e “A” Selva. Ambos já sofreram muito em virtude do abandono e, mesmo que não plenamente a contento, passaram a ser cuidados e a terem pelo menos o mínimo para uma condição mais digna que a anterior, contudo, por mais que todos os esforços venham sendo feitos, inexoravelmente O Selva chegará ao fim, enquanto que o mesmo sequer deveria ser aventado de acontecer com A Selva, muito menos deveríamos agir de formas que pudessem acelerar tal processo.
Não era de se esperar que nos dias de hoje, ainda ficássemos cegos à imperiosa necessidade de se preservar a Amazônia a qualquer custo. Não era de se esperar que nos dias de hoje, o coração da floresta estivesse ameaçado. Não era de se esperar que nos dias de hoje, operações fossem suspensas e que o câncer da ganância e a falácia da libertação através do crescimento a qualquer custo ainda ameaçassem a destruição total do meio ambiente. Muito menos é de se esperar que o tempo de defender o Meio Ambiente se foi e que o mesmo agora deva ser tratado como inimigo. E não apenas um inimigo comum, mas um inimigo que precisa ser destruído de forma rápida e impiedosa a qualquer custo.
- O que mata a mata?! 
- Quem mata a mata?!
E mais, não há que se pensar que após tal destruição, poderemos consertar seus danos. Qualquer um que já tenha visto a destruição de um correntão em ação e os desmatamentos criminosos na Amazônia, o sabe ser impossível. Qualquer um que já tenha visto a destruição causada pelos garimpos criminosos, o sabe ser impossível. Qualquer um que já tenha visto toda a pujança da Selva destruída por queimadas igualmente criminosas, nossos animais mortos pelas chamas, índios e ribeirinhos expulsos de sua terra, ou mesmo mortos, o sabe ser impossível. Não há retorno para esse caminho que estamos trilhando com tanto afinco.


- Como pesca um pescador sem rio?
- Como viverão os povos da floresta, sem floresta? Como viverão os animais da floresta, sem floresta? Como viveremos nós, o povo das cidades, sem as florestas? Como nos alimentaremos, sem as abelhas para polinizar quase tudo que plantamos? Como viverá a humanidade, sem os serviços ambientais gratuitos fornecidos pela Amazônia? Todos sabemos a resposta. Não viveremos! Não por muito tempo! E, cada vez mais, o pérfido bônus será para pouquíssimas pessoas, enquanto que o ônus será amplo e irrestrito para todos, atingindo de forma cruelmente prioritária os desvalidos e os mais pobres.
Ainda assim, nega-se a importância da ciência, nega-se dados científicos que há décadas são gerados, calibrados e confirmados. Qual avestruzes enfiando a cabeça na terra, negamos o óbvio ululante e retornamos à medieval Idade das Trevas. Voltamos a acreditar em terra plana! Negamos o aquecimento global antropocêntrico! Destruímos a mega biodiversidade da Amazônia para plantarmos soja e gado! Poluímos nossos rios à procura de um pouco de ouro para sei lá o que. Estamos destruindo tudo o que nos é importante e que nos mantem vivos para que alguns poucos se locupletem e fiquem ainda mais ricos.
Como canta  o Caetano: 
- “Será que nunca faremos senão confirmar, a incompetência da América católica, que sempre precisará de ridículos tiranos. Será, será que será que será que será, será que esta minha estupida retórica, terá que soar, terá que se ouvir por mais zil anos?”
Será? Zil anos?! Não temos zil anos. Talvez não tenhamos duas décadas. Tempo é um luxo que não temos.
Mas, como canta o Chico:
- “Devo dizer que não vou lhe dar, o enorme prazer de me ver chorar”.
Talvez o faça pelo Selva, ao chegar seu derradeiro fim, mas não podemos nos dar ao “luxo” de deixar que o mesmo aconteça com A Selva, pois assim estaremos antecipando nosso derradeiro fim, não sem antes causar muita dor e sofrimento aos que mais diretamente necessitam da floresta hoje. Não há que se permitir que esse presente distópico se imponha. Há que se lutar contra toda essa destruição, que irá nos tragar para um futuro cruel e desumano, sem qualquer possibilidade de retorno. 
Infelizmente tenho convicção de que a humanidade não durará mais zil anos no planeta Terra e que, quando formos extintos, deixaremos a sensação de que já fomos tarde, no entanto, devemos fazer tudo para evitar nossa extinção e a de todas as outras espécies e, ao olhar fundo nos olhos de quem por mera ganância quer nos destruir, bradar com determinação: 
- Hoje não!!!
Por mais absurdo que possa parecer, depois de tantos avanços científicos, agimos como se todas as outras formas de vida fossem nossas inimigas e que só teremos uma vida plena no planeta quando todas elas forem dizimadas, totalmente destruídas. Nada mais absurdo e distante da realidade. Diametralmente oposto a tal obtusa e ignóbil visão, somente conseguiremos prolongar nosso tempo nessa pequena rocha elipsoide, se preservamos todas as formas de vida: animais, vegetais, algas, fungos, e bactérias. Não podemos viver dissociados delas. Somos parte desse imensurável conglomerado de seres vivos e, embora nos comportemos como células cancerígenas do planeta, acredito, infelizmente cada vez mais sem muita convicção, de que ainda podemos reverter esse quadro, mas, tempo é um luxo que não temos.
O Selva, apesar dos pesares, ainda vive!
A Selva, apesar dos pesares, ainda vive!
Dele, cuido eu. Dela, cuidemos todos nós ou sucumbiremos todos nós! E sucumbiremos muito mais rápido do que aprendemos quando ainda estávamos no colégio. E, se mesmo diante de todo o exposto, você ainda acredita que tais medidas podem ser boas, rogo que atenta e profundamente escute o que há anos já cantava a saudosa Beth:
- "Espero que a natureza, faça você mudar de opinião".
Ninguém solta a mão de ninguém. Ainda há braços e, enquanto houver vida, em nós e no planeta, ainda há esperança, desde que haja luta. Uma luta compartilhada, ombro a ombro, um +um +um +um +um!
Selva!!!

#DiaDoMeioAmbiente #iIBAMA #ICMBio

Carlos Magno Abreu, mais conhecido como Batata, é Analista Ambiental do IBAMA desde 2003, mestre em biologia marinha, tentando terminar de escrever sua tese de doutorado, autor do livro “A história da Operação Boitatá e a serpente de um milhão de dólares: o Brasil na rota do tráfico internacional de animais silvestres” e eventualmente publica textos no seu blog SomosUnsBossais. (http://somosunsbossais.blogspot.com)
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Informações complementares: 

El Pais - Eliane Brum - EU + UM + UM + UM+ A responsabilidade de cada um na luta contra a destruição do Brasil.

Fundação SOS Mata Atlântica (vídeo)

O Globo - Em encontro inédito, sete ex-ministros do Meio Ambiente denunciam 'desmonte' da pasta no governo Bolsonaro.

O Eco - Juristas da área ambiental enviam carta ao presidente Jair Bolsonaro.

G1 Natureza - 15 pontos para entender os rumos da desastrosa política ambiental do governo Bolsonaro.

Blog SomosUnsBossais - Encarando o abismo - considerações sobre a nossa “extinção”.
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