sexta-feira, 23 de agosto de 2019

O Norte Vegano: Verdades Inconvenientes sobre o Fogo que Destrói a Amazônia nesse exato momento.


O Norte Vegano: Verdades Inconvenientes sobre o Fogo que Destrói a Amazônia nesse exato momento.

por Carlos Magno Abreu (Batata)



Recentemente foi dito que a “questão ambiental é para veganos que só comem vegetais”.

Logo no início do vídeo “Terráqueos”, documentário conhecido como “criador de veganos”, são descritos os três estágios da verdade:

- “Ridicularização, oposição violenta e aceitação.”

Pouco antes de terminar de escrever esse texto, uma amiga escreveu no Facebook: “Precisamos começar a ligar os graves problemas em que vivemos às nossas escolhas pessoais de consumo. Ir pra rua sim!! Mas e em casa, como somos agentes de mudanças?

Antes de seguir adiante, por mais incongruente que possa parecer, informo que não sou vegano. E faço tal ressalva, não como desculpa, mas com certa vergonha, pois acredito que já tenho todos os meios e informações necessárias para migrar completamente para essa filosofia de vida, contudo, devido a diversas idiossincrasias pessoais, ainda consumo alguns produtos de origem animal e muito, muito raramente, como peixe. Ainda assim, tenho os preceitos veganos como um norte, que direciona minhas escolhas pessoais e, mesmo ainda não o tendo abraçado na plenitude, me considero um ativista do veganismo.

Desta feita, acredito que se você ainda come carne, especialmente bovina, provavelmente não vai gostar muito das verdades inconvenientes deste texto, mas tenho a esperança que o leia até o final e, caso se sinta aviltado, o que não espero, muito menos tenho a mínima intenção de o fazer, se manifeste em contraposição às informações aqui expostas da forma que achar mais conveniente. 

Dito o dito, vamos aos fatos: A Amazônia está em chamas!!! E as chamas que a consomem o fazem numa velocidade jamais vista desde que os monitoramentos das queimadas antrópicas se iniciaram. Excetuando-se as “fake news”, que obviamente devem ser ignoradas, por sua completa falsidade e absoluta desconexão com o mundo real, não há qualquer dúvida quanto a isso. Porém, não sejamos ingênuos, ninguém coloca fogo na floresta por pura maldade e por um desejo insano de destruir o planeta Terra!!! Seu objetivo primário, senão o único, é obter lucro através do mais obtuso e anacrônico capitalismo predatório. Contudo, por mais óbvio que possa parecer, esse lucro só existe se o consumidor final comprar tal produto. Mas, que produto seria esse? A resposta bastante simples e inconveniente: boi!!! Boi criado para o abate!!! Para abastecer um imenso mercado global ávido por carne bovina!!! Um boi por hectare!!! Em 2018, enquanto que a população brasileira era de 208 milhões de habitantes, o rebanho brasileiro, o segundo maior do planeta, era de 232 milhões de bois, a grande maioria dele criado, por mais absurdo que possa parecer, na Amazônia. E esse número não para de crescer. O principal motor do desmatamento da Floresta Amazônica, realizada com a intensa e insensata utilização de fogo, é a abertura de terreno para se criar novos pastos. Como o solo é pobre, é utilizado como pasto por cerca de dez anos e depois abandonado. E, como a demanda por carne bovina só aumenta, no Brasil e no mundo, novas áreas precisam ser abertas para manter esse padrão nada sustentável de consumo.

E a soja? A absoluta maioria da soja plantada no mundo serve exclusivamente para alimentar animais para o abate. Embora no Brasil boa parte da criação de bovinos seja feita de forma extensiva, de modo que os bois se alimentam basicamente de grama, tal cenário não é mesmo em países que não tem tanta área disponível e a grande maioria dos 70 bilhões de animais terrestres abatidos todos os anos, são criados em torturante confinamento e se alimentam de ração, da qual a soja é o principal componente, e o Brasil, o segundo maior produtor do mundo.

Todavia, caso você ainda coma carne, por favor não se sinta insultado, pois entendo perfeitamente se tratar de um hábito extremamente arraigado em nossa cultura e que, por equivocamente o entendermos como absolutamente necessário, lutamos com força para mantê-lo. Deste modo, deixe-me exemplificar, de forma clara, porém alegórica e limitada, com meu próprio caso.

Há exatos 16 anos tomei posse como Analista Ambiental do IBAMA, tendo sido lotado no norte do Mato Grosso, bem no meio do que à época já se chamava de “Arco do Fogo e do Desmatamento”. Nesse ano o desmatamento atingiu a impressionante área de 25.000 km2, a maior desde os 29.000 km2 desmatados em 1995, sendo superada no ano seguinte, com quase 28.000 km2. Nesses anos, o Mato Grosso foi o estado brasileiro com maior área desmatada e até hoje, esses foram os três maiores desmatamentos registrados no Brasil.



Vi com meus olhos, infindos incêndios florestais. Em sobrevoos de helicóptero, vi incontáveis colunas de fumaça que se erguiam do meio floresta. Senti o calor destes incêndios de dentro das aeronaves. Alguns eram tão intensos que sequer podíamos sobrevoar, sob o risco de queda do helicóptero. Diversas vezes, meus olhos ficaram temporariamente cegos e meu nariz sangrou em função da fuligem das queimadas. Vi o corpo carbonizado de incontáveis animais silvestres. Vi o famigerado correntão(*) em ação. Vi plantações de soja de tamanhos inimagináveis. Vi pastos gigantescos, com infinitas cabeças de bois. Vi os gigantescos areais, dos pastos abandonados no meio da floresta. E, mesmo assim, não fiz a óbvia e ululante conexão entre todas essas absurdas atrocidades e o simples ato de comer carne. Passava horas dentro do helicóptero e quando o mesmo pousava para reabastecer, para que pudéssemos retornar aos sobrevoos à tarde, me alimentava do corpo dos animais que são a base de toda essa destruição e dava meu dinheiro exatamente para seus algozes e assim financiava diretamente todas essas agressões que diariamente com afinco combatíamos. A expressão “enxugar gelo” aqui faz todo o sentido e toma uma dimensão que beira a insensatez.

E, mesmo com toda essa vivência, mesmo sentindo diretamente o calor dos criminosos incêndios florestais na minha própria carne, mesmo vendo toda essa destruição com meus próprios olhos irritados, mesmo sentindo o sangue verter cinza pelo meu nariz, mesmo estando de corpo e alma no meio dessas situações que ultrapassam o absurdo e resultam numa das maiores atrocidades que a humanidade vem cometendo contra o meio ambiente, ainda assim demorei mais de dez anos para parar de comer carne. E, relendo o texto que à época escrevi sobre minhas motivações, fiquei estupefato com minha inépcia em perceber, que a questão ambiental e a destruição da Amazônia, sequer foram fatos relevantes na tomada dessa decisão. A famosa cegueira ética condicionada me impedia de ver o que se impunha diante dos meus olhos. Me impedia de ver que o mundo é o que a gente come. Me impedia de ver, mesmo estando lá, que a Amazônia arde pelo que comemos.

Hoje, diante da repetição de tais atrocidades, que achávamos haver contido, não há mais como se questionar o capitalismo predatório e não se questionar o hábito que sustenta todo esse sistema, qual seja: o hábito  de comer a carne de animais, que é causa e consequência das atrocidades contra as quais lutamos. Não há como inflamadamente discursar contra tal capitalismo predatório e ainda assim transferir nosso parco dinheiro para o seu principal arauto. De nada adianta, ou melhor, adianta muito pouco, postar hashtags em defesa da Amazônia e torcer por um boicote internacional, quando rotineiramente nos alimentamos dos animais que são criados nos pastos que crescem sobre as cinzas da floresta e dos animais silvestres queimados vivos nesse processo.

Com o atual rumo das políticas ambientais, com o IBAMA, ICMBio e diversos outros defensores do meio ambiente estando sob ataque direto, com a imposição de severas limitações para cumprirem sua função constitucional, infelizmente caberá ao cidadão comum, cioso da imperatividade de se preservar a natureza, tomar alguma atitude prática e eficaz contra essa barbárie. Estamos numa guerra ambiental pela nossa sobrevivência no planeta e, problemas excepcionais, exigem soluções excepcionais.

O filosofo Peter Singer, em seu clássico “Libertação Animal”, livro de 1975, que só vim a ler em 2013 e que foi decisivo na minha determinação de parar de comer a carne de animais torturados pelo cativeiro, questiona: “Assim, não devemos perguntar-nos: Nunca é certo comer came?, mas: É certo comer esta carne?”. Embora o viés do livro seja o principio da igual consideração de interesses para todos os seres sencientes, podemos refazer a pergunta, sob a ótica do que vem atualmente acontecendo na Amazônia: - “É certo comer esta carne, de bois criados em pastos crescidos sobre as cinzas da maior e mais biodiversa floresta tropical do planeta Terra?” . Acredito que todos os que estão indignados e lutam para que as queimadas parem, responderão que não é certo comer esta carne produzida desta forma. E no momento, outra não há!!!

Conheço, seja no IBAMA e no ICMBio, seja em ONGs, sejam artistas, advogados, policiais, nas mais variadas camadas sociais, diversas pessoas, muitas da quais tenho a honra de chamar de amigos, muito mais engajadas e que passam por muito mais intempéries e sofrimentos pela defesa do meio ambiente do que eu jamais serei capaz. Pessoas que fazem com que a minha experiência profissional seja pífia e insignificante e que ainda hoje, rotineiramente e com afinco, fazem o trabalho que já me sinto cansado de fazer. Jamais as ofenderia e sequer teria envergadura moral para questionar o ímpeto de luta dessas pessoas pelo simples fato de eu ter parado de comer carne há poucos anos.

Contudo, como explicitado de maneira inconteste, numa releitura metafórica da nordestina música “Reconvexo”: “sou a chuva que lança as cinzas da Amazônia sobre os automóveis de São Paulo” – pela força simbólica das trevas  que se impuseram sobre a maior cidade da América Latina e por conseguinte, o maior mercado consumidor de carne, não há mais como não trazer à baila nossas escolhas alimentares e, de forma igualmente contundente, questionar o hábito de comer animais que são criados nos pastos abertos sobre as cinzas do que antes era a maior e mais biodiversa floresta tropical do mundo.

Desta feita, clamo que vocês sejam muito mais espertos e ágeis do que jamais fui, pois, mais uma vez e com intensidade muito maior, o fogo na Amazônia nos afronta, todos os dias, em todas as mídias existentes. Com os olhos marejados almejo que, enquanto defensores do meio ambiente, paremos de comer carne, especialmente a bovina, o quanto antes. Paremos de dar dinheiro pra quem risca o fósforo. Paremos de enriquecer quem se locupleta com esses malditos incêndios e com a destruição do nosso maior patrimônio, destruição esta que tem o real potencial de afetar toda a biosfera. Esse gigante destruidor de vidas, se alimenta exclusivamente de dinheiro e nesse momento sua principal fonte é oriunda da venda de proteína animal!!! O delicioso hambúrguer, o inegável churrasco, o nutritivo bife e toda a gama de iguarias deliciosas que sequer pensamos em parar de comer, são os principais arrecadadores do dinheiro que alimenta essa besta fera. Cada pedacinho, por menor que seja, acende um fósforo na Amazônia. E já há fósforos em demasia acesos por lá!!! Hoje, já não é mais possível dizer que não sabemos das nefastas consequências dos nossos atos.

Não quero soar hipócrita e exigir do outro aquilo que não pratiquei, mas, não temos mais uma década para avaliar a real necessidade de pararmos de nos alimentar de animais mortos. Tempo é um luxo que não temos. Simplesmente não temos. Não o tínhamos 2003, não o tínhamos em 2013, mas agora, em 2019, não o temos de forma muito mais intensa, pois estamos à beira do colapso e a menos de um passo do precipício.

É imperioso que comecemos!!! Se não for pelos direitos dos animais, que seja pela defesa do nosso meio ambiente e para tentar diminuir as chances que nossa maior floresta seja reduzida a pasto. Comecemos. Seja numa segunda sem carne, seja sem comer carne nos dias de semana, seja sem comer carne por apenas um mês, até que as queimadas parem, que chegue a época de chuvas e nos salve ou qualquer coisa. Mas, hoje, mais do que nunca, é imperioso que paremos de nos alimentar de animais mortos que foram criados nos pastos abertos sobre as cinzas da floresta amazônica. Não há como não questionar esse hábito, falaciosamente tido como natural e necessário. Não há como desvincular nossas decisões com as nefastas consequências que hoje se impõe à Amazônia. Não há como consumir tais alimentos, hoje absolutamente desnecessários para a nossa saúde e manutenção da vida, sem sentir um peso na consciência, nem que seja mínimo.

Chego a pensar que talvez se trate da pauta mais importante do nosso tempo. Se não a mais importante, a única que podemos agir diretamente, sem depender de ninguém, muito menos de qualquer política pública ou criação de qualquer lei protetiva do meio ambiente, que sabemos, no momento, não virá para nos salvar. Basta não consumir nenhuma proteína de origem animal, ou pelo menos, reduzir substancialmente seu consumo.

Obviamente, diametralmente oposto à frase do início, não são apenas os veganos que se importam com as questões ambientais, mas talvez a adesão ao veganismo, mesmo que apenas como um norte, tenha o condão de ser a principal força motriz para impedir que toda a Amazônia entre em colapso pelas chamas da ganância humana, chamas estas sustentadas por um hábito alimentar que não mais se sustenta sob nenhuma ótica da vida moderna.

Há incontáveis protestos programados para esse final de semana, no Brasil e em diversas outras cidades ao redor do mundo. Participe de todos os que forem possíveis, mas tenha em mente que de nada adianta, ou adianta muito pouco, participar de tais protestos e ao fim comemorar o sucesso das manifestações em um churrascão, mesmo que repleto de vegetais orgânicos e cervejas artesanais. Pro capitalismo predatório, que no momento faz arder a Amazônia, nossa opinião não importa, o “trend topics” do Twitter não importa, a quantidade de compartilhamentos desse texto não importa! Nada importa, desde que o dinheiro continue fluindo para ele.

E, caso não consigamos fazer cessar esse flagelo, como cruel ironia final da nossa destruição, após a maior floresta tropical do mundo ser reduzida a um tapete de grama, sobre suas cinzas caminharão apenas animais que só se alimentam de plantas. Enfim, teremos um norte vegano!!!

Não nos esqueçamos que no fundo, toda guerra se inicia por recursos naturais.

Como sempre, finalizo citando Gandhi: “Seja a mudança que você deseja para o mundo”.

Considere o veganismo, mesmo que eventualmente.

Considere o veganismo, mesmo que apenas como um norte.


#todospelaamazonia
#ajapelaamazonia
#sejaveganopelaamazonia

(*) Uma gigantesca corrente, puxada por dois tratores, que derruba tudo que está no seu caminho (e.g.: https://youtu.be/zDK8qY0EKoo)
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Carlos Magno Abreu, mais conhecido como Batata, é Analista Ambiental do IBAMA desde 2003, mestre em biologia marinha, tentando terminar de escrever sua tese de doutorado, autor do livro “A história da Operação Boitatá e a serpente de um milhão de dólares: o Brasil na rota do tráfico internacional de animais silvestres” e eventualmente publica textos no seu blog SomosUnsBossais. (http://somosunsbossais.blogspot.com)

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Textos complementares:

- Sobre animais, vegetais e terráqueos




- Encarando o abismo - considerações sobre a nossa "extinção".







- Relatos Selvagens sobre o mais distópico Dia do Meio Ambiente.




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