O Norte Vegano: Verdades
Inconvenientes sobre o Fogo que Destrói a Amazônia nesse exato momento.
por Carlos Magno
Abreu (Batata)
Recentemente foi dito
que a “questão ambiental é para veganos que só comem vegetais”.
Logo no início do vídeo
“Terráqueos”, documentário conhecido como “criador de veganos”, são
descritos os três estágios da verdade:
- “Ridicularização,
oposição violenta e aceitação.”
Pouco antes de
terminar de escrever esse texto, uma amiga escreveu no Facebook: “Precisamos
começar a ligar os graves problemas em que vivemos às nossas escolhas pessoais
de consumo. Ir pra rua sim!! Mas e em casa, como somos agentes de mudanças?”
Antes de seguir
adiante, por mais incongruente que possa parecer, informo que não sou vegano. E
faço tal ressalva, não como desculpa, mas com certa vergonha, pois acredito que
já tenho todos os meios e informações necessárias para migrar completamente
para essa filosofia de vida, contudo, devido a diversas idiossincrasias
pessoais, ainda consumo alguns produtos de origem animal e muito, muito raramente,
como peixe. Ainda assim, tenho os preceitos veganos como um norte, que
direciona minhas escolhas pessoais e, mesmo ainda não o tendo abraçado na
plenitude, me considero um ativista do veganismo.
Desta feita, acredito
que se você ainda come carne, especialmente bovina, provavelmente não vai
gostar muito das verdades inconvenientes deste texto, mas tenho a esperança que
o leia até o final e, caso se sinta aviltado, o que não espero, muito menos
tenho a mínima intenção de o fazer, se manifeste em contraposição às
informações aqui expostas da forma que achar mais conveniente.
Dito o dito, vamos
aos fatos: A Amazônia está em chamas!!! E as chamas que a consomem o fazem numa
velocidade jamais vista desde que os monitoramentos das queimadas antrópicas se
iniciaram. Excetuando-se as “fake news”, que obviamente devem ser
ignoradas, por sua completa falsidade e absoluta desconexão com o mundo real,
não há qualquer dúvida quanto a isso. Porém, não sejamos ingênuos, ninguém
coloca fogo na floresta por pura maldade e por um desejo insano de destruir o
planeta Terra!!! Seu objetivo primário, senão o único, é obter lucro através do
mais obtuso e anacrônico capitalismo predatório. Contudo, por mais óbvio que
possa parecer, esse lucro só existe se o consumidor final comprar tal produto. Mas,
que produto seria esse? A resposta bastante simples e inconveniente: boi!!! Boi
criado para o abate!!! Para abastecer um imenso mercado global ávido por carne
bovina!!! Um boi por hectare!!! Em 2018, enquanto que a população brasileira
era de 208 milhões de habitantes, o rebanho brasileiro, o segundo maior do
planeta, era de 232 milhões de bois, a grande maioria dele criado, por mais
absurdo que possa parecer, na Amazônia. E esse número não para de crescer. O
principal motor do desmatamento da Floresta Amazônica, realizada com a intensa
e insensata utilização de fogo, é a abertura de terreno para se criar novos
pastos. Como o solo é pobre, é utilizado como pasto por cerca de dez anos e
depois abandonado. E, como a demanda por carne bovina só aumenta, no Brasil e
no mundo, novas áreas precisam ser abertas para manter esse padrão nada
sustentável de consumo.
E a soja? A absoluta
maioria da soja plantada no mundo serve exclusivamente para alimentar animais
para o abate. Embora no Brasil boa parte da criação de bovinos seja feita de
forma extensiva, de modo que os bois se alimentam basicamente de grama, tal
cenário não é mesmo em países que não tem tanta área disponível e a grande
maioria dos 70 bilhões de animais terrestres abatidos todos os anos, são
criados em torturante confinamento e se alimentam de ração, da qual a soja é o
principal componente, e o Brasil, o segundo maior produtor do mundo.
Todavia, caso você
ainda coma carne, por favor não se sinta insultado, pois entendo perfeitamente
se tratar de um hábito extremamente arraigado em nossa cultura e que, por
equivocamente o entendermos como absolutamente necessário, lutamos com força
para mantê-lo. Deste modo, deixe-me exemplificar, de forma clara, porém
alegórica e limitada, com meu próprio caso.
Há exatos 16 anos
tomei posse como Analista Ambiental do IBAMA, tendo sido lotado no norte do Mato
Grosso, bem no meio do que à época já se chamava de “Arco do Fogo e do
Desmatamento”. Nesse ano o desmatamento atingiu a impressionante área de 25.000
km2, a maior desde os 29.000 km2 desmatados em 1995,
sendo superada no ano seguinte, com quase 28.000 km2. Nesses anos, o
Mato Grosso foi o estado brasileiro com maior área desmatada e até hoje, esses
foram os três maiores desmatamentos registrados no Brasil.
Vi com meus olhos, infindos
incêndios florestais. Em sobrevoos de helicóptero, vi incontáveis colunas de
fumaça que se erguiam do meio floresta. Senti o calor destes incêndios de
dentro das aeronaves. Alguns eram tão intensos que sequer podíamos sobrevoar,
sob o risco de queda do helicóptero. Diversas vezes, meus olhos ficaram
temporariamente cegos e meu nariz sangrou em função da fuligem das queimadas.
Vi o corpo carbonizado de incontáveis animais silvestres. Vi o famigerado
correntão(*) em ação. Vi plantações de soja de tamanhos inimagináveis. Vi pastos
gigantescos, com infinitas cabeças de bois. Vi os gigantescos areais, dos
pastos abandonados no meio da floresta. E, mesmo assim, não fiz a óbvia e
ululante conexão entre todas essas absurdas atrocidades e o simples ato de
comer carne. Passava horas dentro do helicóptero e quando o mesmo pousava para
reabastecer, para que pudéssemos retornar aos sobrevoos à tarde, me alimentava
do corpo dos animais que são a base de toda essa destruição e dava meu dinheiro
exatamente para seus algozes e assim financiava diretamente todas essas
agressões que diariamente com afinco combatíamos. A expressão “enxugar gelo”
aqui faz todo o sentido e toma uma dimensão que beira a insensatez.
E, mesmo com toda
essa vivência, mesmo sentindo diretamente o calor dos criminosos incêndios florestais
na minha própria carne, mesmo vendo toda essa destruição com meus próprios olhos
irritados, mesmo sentindo o sangue verter cinza pelo meu nariz, mesmo estando
de corpo e alma no meio dessas situações que ultrapassam o absurdo e resultam numa
das maiores atrocidades que a humanidade vem cometendo contra o meio ambiente,
ainda assim demorei mais de dez anos para parar de comer carne. E, relendo o
texto que à época escrevi sobre minhas motivações, fiquei estupefato com minha
inépcia em perceber, que a questão ambiental e a destruição da Amazônia, sequer
foram fatos relevantes na tomada dessa decisão. A famosa cegueira ética
condicionada me impedia de ver o que se impunha diante dos meus olhos. Me
impedia de ver que o mundo é o que a gente come. Me impedia de ver, mesmo
estando lá, que a Amazônia arde pelo que comemos.
Hoje, diante da
repetição de tais atrocidades, que achávamos haver contido, não há mais como se
questionar o capitalismo predatório e não se questionar o hábito que sustenta
todo esse sistema, qual seja: o hábito
de comer a carne de animais, que é causa e consequência das atrocidades contra as quais lutamos. Não há como inflamadamente discursar contra tal
capitalismo predatório e ainda assim transferir nosso parco dinheiro para o seu
principal arauto. De nada adianta, ou melhor, adianta muito pouco, postar hashtags
em defesa da Amazônia e torcer por um boicote internacional, quando rotineiramente
nos alimentamos dos animais que são criados nos pastos que crescem sobre as
cinzas da floresta e dos animais silvestres queimados vivos nesse processo.
Com o atual rumo das
políticas ambientais, com o IBAMA, ICMBio e diversos outros defensores do meio
ambiente estando sob ataque direto, com a imposição de severas limitações para cumprirem
sua função constitucional, infelizmente caberá ao cidadão comum, cioso da
imperatividade de se preservar a natureza, tomar alguma atitude prática e
eficaz contra essa barbárie. Estamos numa guerra ambiental pela nossa
sobrevivência no planeta e, problemas excepcionais, exigem soluções
excepcionais.
O filosofo Peter
Singer, em seu clássico “Libertação Animal”, livro de 1975, que só vim a
ler em 2013 e que foi decisivo na minha determinação de parar de comer a carne
de animais torturados pelo cativeiro, questiona: “Assim, não devemos
perguntar-nos: Nunca é certo comer came?, mas: É certo comer esta carne?”.
Embora o viés do livro seja o principio da igual consideração de interesses
para todos os seres sencientes, podemos refazer a pergunta, sob a ótica do que
vem atualmente acontecendo na Amazônia: - “É certo comer esta carne, de bois
criados em pastos crescidos sobre as cinzas da maior e mais biodiversa floresta
tropical do planeta Terra?” . Acredito que todos os que estão indignados e
lutam para que as queimadas parem, responderão que não é certo comer esta carne
produzida desta forma. E no momento, outra não há!!!
Conheço, seja no IBAMA
e no ICMBio, seja em ONGs, sejam artistas, advogados, policiais, nas mais
variadas camadas sociais, diversas pessoas, muitas da quais tenho a honra de
chamar de amigos, muito mais engajadas e que passam por muito mais intempéries
e sofrimentos pela defesa do meio ambiente do que eu jamais serei capaz.
Pessoas que fazem com que a minha experiência profissional seja pífia e
insignificante e que ainda hoje, rotineiramente e com afinco, fazem o trabalho
que já me sinto cansado de fazer. Jamais as ofenderia e sequer teria
envergadura moral para questionar o ímpeto de luta dessas pessoas pelo simples
fato de eu ter parado de comer carne há poucos anos.
Contudo, como
explicitado de maneira inconteste, numa releitura metafórica da nordestina
música “Reconvexo”: “sou a chuva que lança as cinzas da Amazônia sobre os
automóveis de São Paulo” – pela força simbólica das trevas que
se impuseram sobre a maior cidade da América Latina e por conseguinte, o maior mercado
consumidor de carne, não há mais como não trazer à baila nossas escolhas
alimentares e, de forma igualmente contundente, questionar o hábito de comer
animais que são criados nos pastos abertos sobre as cinzas do que antes era a
maior e mais biodiversa floresta tropical do mundo.
Desta feita, clamo
que vocês sejam muito mais espertos e ágeis do que jamais fui, pois, mais uma
vez e com intensidade muito maior, o fogo na Amazônia nos afronta, todos os
dias, em todas as mídias existentes. Com os olhos marejados almejo que,
enquanto defensores do meio ambiente, paremos de comer carne, especialmente a
bovina, o quanto antes. Paremos de dar dinheiro pra quem risca o fósforo. Paremos
de enriquecer quem se locupleta com esses malditos incêndios e com a destruição
do nosso maior patrimônio, destruição esta que tem o real potencial de afetar
toda a biosfera. Esse gigante destruidor de vidas, se alimenta exclusivamente
de dinheiro e nesse momento sua principal fonte é oriunda da venda de proteína
animal!!! O delicioso hambúrguer, o inegável churrasco, o nutritivo bife e toda
a gama de iguarias deliciosas que sequer pensamos em parar de comer, são os
principais arrecadadores do dinheiro que alimenta essa besta fera. Cada
pedacinho, por menor que seja, acende um fósforo na Amazônia. E já há fósforos
em demasia acesos por lá!!! Hoje, já não é mais possível dizer que não sabemos
das nefastas consequências dos nossos atos.
Não quero soar
hipócrita e exigir do outro aquilo que não pratiquei, mas, não temos mais uma
década para avaliar a real necessidade de pararmos de nos alimentar de animais
mortos. Tempo é um luxo que não temos. Simplesmente não temos. Não o tínhamos
2003, não o tínhamos em 2013, mas agora, em 2019, não o temos de forma muito
mais intensa, pois estamos à beira do colapso e a menos de um passo do
precipício.
É imperioso que
comecemos!!! Se não for pelos direitos dos animais, que seja pela defesa do
nosso meio ambiente e para tentar diminuir as chances que nossa maior floresta
seja reduzida a pasto. Comecemos. Seja numa segunda sem carne, seja sem comer
carne nos dias de semana, seja sem comer carne por apenas um mês, até que as
queimadas parem, que chegue a época de chuvas e nos salve ou qualquer coisa.
Mas, hoje, mais do que nunca, é imperioso que paremos de nos alimentar de
animais mortos que foram criados nos pastos abertos sobre as cinzas da floresta
amazônica. Não há como não questionar esse hábito, falaciosamente tido como
natural e necessário. Não há como desvincular nossas decisões com as nefastas
consequências que hoje se impõe à Amazônia. Não há como consumir tais alimentos,
hoje absolutamente desnecessários para a nossa saúde e manutenção da vida, sem
sentir um peso na consciência, nem que seja mínimo.
Chego a pensar que talvez
se trate da pauta mais importante do nosso tempo. Se não a mais importante, a
única que podemos agir diretamente, sem depender de ninguém, muito menos de qualquer
política pública ou criação de qualquer lei protetiva do meio ambiente, que
sabemos, no momento, não virá para nos salvar. Basta não consumir nenhuma
proteína de origem animal, ou pelo menos, reduzir substancialmente seu consumo.
Obviamente,
diametralmente oposto à frase do início, não são apenas os veganos que se
importam com as questões ambientais, mas talvez a adesão ao veganismo, mesmo
que apenas como um norte, tenha o condão de ser a principal força motriz para
impedir que toda a Amazônia entre em colapso pelas chamas da ganância humana, chamas
estas sustentadas por um hábito alimentar que não mais se sustenta sob nenhuma
ótica da vida moderna.
Há incontáveis
protestos programados para esse final de semana, no Brasil e em diversas outras
cidades ao redor do mundo. Participe de todos os que forem possíveis, mas tenha
em mente que de nada adianta, ou adianta muito pouco, participar de tais
protestos e ao fim comemorar o sucesso das manifestações em um churrascão,
mesmo que repleto de vegetais orgânicos e cervejas artesanais. Pro capitalismo
predatório, que no momento faz arder a Amazônia, nossa opinião não importa, o “trend
topics” do Twitter não importa, a quantidade de compartilhamentos
desse texto não importa! Nada importa, desde que o dinheiro continue fluindo para
ele.
E, caso não
consigamos fazer cessar esse flagelo, como cruel ironia final da nossa
destruição, após a maior floresta tropical do mundo ser reduzida a um tapete de
grama, sobre suas cinzas caminharão apenas animais que só se alimentam de
plantas. Enfim, teremos um norte vegano!!!
Não nos esqueçamos
que no fundo, toda guerra se inicia por recursos naturais.
Como sempre, finalizo
citando Gandhi: “Seja a mudança que você deseja para o mundo”.
Considere o
veganismo, mesmo que eventualmente.
Considere o
veganismo, mesmo que apenas como um norte.
#todospelaamazonia
#ajapelaamazonia
#sejaveganopelaamazonia
(*) Uma gigantesca corrente, puxada por dois tratores, que derruba tudo que está no seu caminho (e.g.: https://youtu.be/zDK8qY0EKoo)
*****
*****
Carlos Magno Abreu,
mais conhecido como Batata, é Analista Ambiental do IBAMA desde 2003, mestre em
biologia marinha, tentando terminar de escrever sua tese de doutorado, autor do
livro “A história da Operação Boitatá e a serpente de um milhão de dólares: o
Brasil na rota do tráfico internacional de animais silvestres” e eventualmente
publica textos no seu blog SomosUnsBossais. (http://somosunsbossais.blogspot.com)
*****
Textos complementares:
- Sobre animais,
vegetais e terráqueos
- Encarando o abismo
- considerações sobre a nossa "extinção".
- Relatos Selvagens
sobre o mais distópico Dia do Meio Ambiente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário