domingo, 1 de novembro de 2020

Veganismo e Pandemias: a tempestade perfeita.

por Carlos Magno Abreu (Batata)                                                                                                 (english version)
 

Junho de 2019: “Esse é o mundo que nós criamos. Congratulações”. Último episódio do seriado distópico “Years and Years” (HBO).

Janeiro de 2020: “Não se trata de se, mas de quando”. Primeiro episódio do seriado documentário “Pandemia” (Netflix).

Onze de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde anuncia que a COVID-19, doença causada pelo novo coronavírus, passa a ser caracterizada como uma pandemia.

Dezenove dias depois, em entrevista, o biólogo Dr. Átila Iamarino afirma: - “O mundo como a gente conhecia acabou”. Neste dia, o Brasil havia confirmado 4.663 casos e 166 óbitos pela COVID-19. Sete meses depois, em 30 de outubro de 2020, temos confirmados 5.519.528 casos e 159.562 óbitos e no mundo, em pelo menos 188 países, 45.475.639 de casos, com 1.187.014 de mortos. Não bastasse uma pandemia causada por um novo vírus fatal, encontramo-nos em meio a uma proliferação global de notícias falsas, movimentos anti-vacinas, devaneios terraplanistas e negacionismos de toda a sorte, seja da ciência, seja das queimadas na Amazônia e no Pantanal, ou mesmo do inequívoco aquecimento global antrópico. Fez-se a tempestade perfeita. Não apenas pelos efeitos do coronavírus, os mortos se acumulam aos milhares por dia.

Por mais distópico que posso parecer, não nos causa estranheza o recorrente surgimento de novos vírus e doenças. A história da humanidade está repleta de diversas zoonoses que passaram a nos afligir, a quase totalidade delas, diretamente relacionadas à forma como tratamos os animais. Desde 1980, o número de zoonoses triplica a cada década. Em 2016, a Alemanha abateu dezenas de milhares de aves após a confirmação de um surto de gripe aviária e o mesmo já ocorreu na China, Austrália, Filipinas e diversos outros países. Nos anos 1980, surgiu no Reino Unido, a “Doença da Vaca Louca” e, embora mais de quatro milhões de animais tenham sido sacrificados, em pouco tempo a mesma se espalhou por todo o mundo. Em 2019, devido a um surto de peste suína, a China abateu dezenas de milhões de porcos. O mesmo vem ocorrendo, cada vez com maior frequência, em diversos países, com diferentes espécies, criadas para os mais diversos fins, de alimentos e vestuário, a animais que são abatidos para se fazer pincéis com seus pelos.

No livro "Pandemias, Saude Global e Escolhas Pessoais”, publicado em abril de 2020, após ampla revisão da literatura especifica sobre pandemias e surtos de doenças infecto-contagiosas nas ultimas décadas, os autores afirmam: “Por um lado, não podemos ser ingênuos e presumir que todos os surtos de doenças infecciosas estão associados exclusivamente ao consumo de produtos de origem animal. (…) Por outro lado, até o momento não houve uma única pandemia na história da humanidade que tivesse sua origem em produtos vegetais.”

Frente a esses números assustadores, fica a questão: quantas aves abatidas por causa de vírus novos são aceitáveis para nos manter em segurança? Toda essa matança nos deixa seguros? Quantos porcos são admissíveis? Quantas “vacas loucas”? Não seríamos nós os loucos por, com medo de novos vírus, após abatermos um número incalculável de animais, criados em péssimas condições e em quantidades absurdas, voltemos a criá-los, nos mesmos locais, nas mesmas péssimas condições e quantidades absurdas, apenas torcendo para que novas doenças não se manifestam da mesma forma que há pouco? Loucura não seria fazer exatamente as mesmas coisas e esperar resultados diferentes? Jamais aprenderemos que não há jeito certo de fazer o errado?

Existem basicamente duas formas de se criar animais para o consumo humano. A criação intensiva, com densidades populacionais inimagináveis, na qual os animais mal conseguem se mover e que, em virtude das péssimas condições, somente se sustenta com o uso massivo de antibióticos, tanto que mais de 3/4 de todos os antibióticos do mundo são destinados para esse fim. De outro forma, a criação extensiva, muito utilizada no Brasil para o rebanho bovino, com densidade menor que um boi por hectare, somente se sustenta, com subsídios do governo ou com práticas criminosas, eventualmente com as duas. Tal criação ocorre majoritariamente sobre as cinzas da Floresta Amazônica, onde a abertura de áreas para novos pastos é responsável por mais de 80% dos desmatamentos e queimadas. Hoje no país, literalmente, existe mais gado do que brasileiro, e, só na Amazônia, por mais inconcebível e inexplicável que possa ser, existem três bois para cada pessoa. Lá também se planta muita soja, sendo que mais de 90% da produção é utilizada como ração para os animais de abate em todo o mundo.

Somos 1/3 da biomassa dos mamíferos do planeta. Bois, porcos, cabras e todos os outros que criamos para o abate, correspondem a mais de 60%. As outras espécies, de ratos a baleias, somam apenas 4%. Para consumo, matamos mais de 70 bilhões de animais terrestres por ano e cerca de 200 milhões de toneladas de peixes. No mesmo período, derrubamos 15 bilhões de árvores, via de regra para abrir mais espaço para animais de abate ou para plantarmos alimentos para eles. No Brasil se mata 1 boi, 1 porco e 189 frangos por segundo. Todos os segundos de todos os minutos de todas as horas de todos os dias do ano!

Precisamos falar sobre como a nossa relação tirânica, fundamentada em toda a sorte de abusos contra os animais, silvestres ou domesticados, intensifica, potencializa e auxilia, não só a disseminar, mas a criar novos vírus, novos patógenos e novas doenças. Seja qual for a origem da zoonose que “pulou” para nossa espécie, há que se ter em mente que existe abuso contra os animais e contra o meio ambiente. Queimamos a floresta para abrir novos pastos, desequilibramos o meio ambiente, aumentamos temperatura global, colocamos animais domésticos e humanos, ambos em condições de vulnerabilidade, em contato direto e constante com animais silvestres que, pela destruição de seus habitats, também se encontram debilitados e mais propensos a doenças. Mais uma vez, fez-se a tempestade perfeita.

Precisamos mudar essa relação despótica e coisificada que impomos aos animais e migrarmos para um distanciamento saudável e respeitoso, de modo que nossos hábitos respeitem seus direitos básicos, especialmente o direito à vida. “Os animais do mundo existem para seus próprios propósitos. Não foram feitos para os seres humanos, do mesmo modo que os negros não foram feitos para os brancos, nem as mulheres para os homens” (Alice Walker).

Dezenas de milhares de anos foram necessários para, de caçadores-coletores, passando pelo desenvolvimento da agricultura, atingirmos a marca de 1 bilhão de pessoas no planeta, que só ocorreu em 1800. Dai, em pouco mais de 200 anos, ultrapassamos 7 bilhões e estamos à beira do colapso, no limiar da capacidade de sustentação da Terra, se é que já não a ultrapassamos. Nesse ritmo de morte e destruição, em menos de um século, talvez bem menos, voltaremos a ser um punhado de caçadores-coletores, pouco antes de nossa extinção.

Na natureza existem poucos carnívoros verdadeiros, pois para mantê-los necessita-se de um ambiente equilibrado que suporte muitas presas. Nosso planeta não suporta bilhões de carnívoros ávidos por carne todos os dias, várias vezes ao dia. A raiz do nosso desequilíbrio ambiental está exatamente no nosso prato. O simples hábito de comer a carne de animais todos os dias está destruindo o meio ambiente e a nossa saúde, está matando dezenas de bilhões de animais por ano e está intimamente relacionado ao surgimento de novas doenças e ao agravamento de outras. Atualmente, em virtude do consumo excessivo de produtos de origem animal, temos 2,5 bilhões de pessoas acima do peso, número três vezes maior do que o de desnutridos. Obesidade e doenças cardiovasculares têm se tornado as principais causas de morte em diversas partes do planeta. Há que se interromper essa calamidade o quanto antes.

Devemos, o mais breve possível, achatar a curva de consumo de produtos de origem animal, para assim achatarmos a curva de animais abatidos, desejando que esses números sejam apenas uma terrível história de horror que as futuras gerações contarão sobre o nosso barbarismo gastronômico. Já definimos metas para a redução das emissões de carbono na atmosfera, agora é inadiável definir metas para redução da criação de animais em todo o mundo.

Não há mais como negar que o cenário acima retratado só se perpetua sob a égide do negacionismo da carne. Mesmo num contexto onde temos todas as informações, ainda assim, embora diariamente presentes em nossas refeições, aparentemente os animais mortos são os “referentes ausentes” em nossos corações e mentes, de modo que as relações de causa e efeito a eles não se aplicam.

Precisamos tirar a morte da nossa alimentação e das nossas vidas. Precisamos entender que, enquanto continuarmos a matar animais e árvores aos bilhões, também morreremos aos bilhões. O mundo é o que a gente come. Por mais inconveniente que possa parecer, da abundância do prato fez-se o pranto abundante e, se nessa toada seguirmos, restar-nos-á somente florestas em cinzas, animais em carcaças e bilhões de nós em covas coletivas.

Mas, como parar essa carnificina, se precisamos comer todos os dias?

Em 1944, no Reino Unido, um grupo de amigos fundou a “Sociedade Vegana”. Numa definição breve e simplificada, o veganismo é uma filosofia de vida que busca excluir todas as formas de exploração e crueldade contra animais. Assim, não apenas a dieta vegana é ausente de qualquer item de origem animal, ou que resulte de qualquer tipo de abuso contra eles, como também o são todos os objetos e produtos utilizados.

Em virtude da maior divulgação de todos os fatos aqui descritos, o interesse pelo veganismo tem aumentado vertiginosamente nos últimos anos. A cada dia surgem novos tecnologias e novos produtos, antes inimagináveis. Carnes vegetais que imitam a carne animal. Leites e queijos vegetais são cada vez mais presentes nas prateleiras dos mercados. Ingredientes de origem animal são substituídos pelos de origem vegetal. Há poucos anos, se questionava se uma dieta exclusivamente vegetal era possível. Hoje se tem certeza de que, mais do que possível, e cada vez mais estudos científicos indicam isso, a dieta vegana é das mais saudáveis que se conhece. Cada vez mais, atletas de elite, de ultramaratonistas e halterofilistas, de  tenistas a pilotos de fórmula 1, estão migrando para uma alimentação exclusivamente vegetal para aumentar sua performance num ambiente altamente competitivo. Cada vez mais estudos científicos indicam que a dieta vegana, não só previne diversas doenças cardiovasculares, como pode inclusive revertê-las.

Obviamente, não basta somente parar de comer animais para solucionarmos todos os nossos muitos problemas. Não se pretende aqui propalar que o veganismo seja a panaceia que vai salvar a humanidade de todos os males, que vai acabar com o fogo na Amazônia, interromper o aquecimento global, nos curar da COVID-19 e impedir que sejamos molestados por outras pandemias. A sedução das soluções fáceis para problemas complexos só persiste na ignorância. Contudo, também não resolvemos problemas que fingimos não existir.

Assim sendo, não levar em conta, de forma responsável e comprometida, que o modo como nos relacionamos com os animais teve, e tem, influência direta nos eventos de saúde pública em diversas partes do globo, também beira à inocência de querer tapar o sol com a peneira. Mais ainda, ouso afirmar que não há solução possível, de longa duração e abrangência global, que não perpasse pelos princípios do veganismo.

Napoleão Bonaparte disse: meias medidas, perdem todas as guerras”. E estamos no meio da maior guerra que já criamos, a guerra pela nossa própria sobrevivência e  nossos obsoletos e enraizados hábitos são nossos maiores inimigos. Se não nos livrarmos das amarras da cegueira ética a que nos condicionamos por séculos, sucumbiremos, como sucumbem os que vão ao campo de batalha com os olhos vendados pela rotina e as mãos amarradas pelo passado.

Cada criação de animais para abate é uma bomba-relógio que armamos. E, quando uma delas explode, como já aconteceu diversas vezes, tentamos criar novos mecanismos pra monitorar de forma mais eficiente essas bombas-relógio e logo após armamos outras, como se nada houvesse acontecido. Mais sensato não seria pararmos de armar bombas-relógio que, como qualquer bomba, um dia explodirá!?

Vencida a pandemia, mais uma vez libertos pela ciência e pela vacinação, finalmente abraçados, choraremos nossos mortos. Mas, passado o luto coletivo, tendo o veganismo como norte, urge que definitivamente abandonemos o negacionismo da carne. Urge que definitivamente desmontemos essas bombas-relógio que chamamos de criação animal. Assim, talvez consigamos evitar nossa aniquilação e voltar a sonhar que as futuras gerações, ao invés de distopia e destruição, contemplem uma utopia construtiva e sustentável nessa aconchegante e fecunda pequena rocha redonda que, apesar dos pesares, chamamos de mãe Terra.

Hoje, 1o de novembro, é o Dia Internacional do Veganismo. Aproveite a data e se aventure rumo ao mundo novo possível. Comece agora. Nem que seja apenas trocando a manteiga pelo azeite, o mel pelo melado, a seda pelo algodão, o couro animal pelo couro vegetal. Troque o filé por mais batata frita. Coma hambúrguer 100% vegetal. Melhor ainda, faça um. Troque o bacon por cogumelos. Experimente novas receitas, novas texturas, aromas e sabores. Participe da campanha “Segunda Sem Carne”. Ao se sentir melhor, passe para dias úteis sem carne. E siga firme. Tudo é difícil até se tornar fácil. Mas, acredite, é muito mais simples e agradável do que se pode imaginar.

Ao ser perguntado sobre o medo de que seu barco afundasse nas diversas aventuras náuticas que fez por todos os oceanos do mundo, o grande navegador Amir Klink respondeu: “O pior naufrágio é não partir”. Partamos! Nosso porto seguro já não nos oferece segurança. Aventuremo-nos rumo às novas possibilidades de viver sem depender da morte. Será uma das melhores decisões de vossas vidas. Animais, árvores e toda a biosfera, mesmo que silenciosamente, em júbilo agradecerão. As futuras gerações igualmente o farão.

Considere o veganismo. Agora. Tempo é um luxo que não temos.

O pior naufrágio é não partir”.


Carlos Magno Abreu, mais conhecido como Batata, é mestre em biologia marinha, analista ambiental do IBAMA desde 2003, eventualmente publica no seu blog SomosUnsBossais e pretende, sem muita convicção, antes do final de 2020, terminar de escrever o livro Do Prato ao Pranto: o norte vegano, a Amazônia em chamas e a pandemia”. Em 2013 publicou o livro O Brasil na Rota do Tráfico Internacional de Animais Silvestres – A História da Operação Boitatá e a Serpente de Um Milhão de Dólares”

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