terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Também morre quem atira

Também morre quem atira
por Carlos Magno Abreu (Batata)
     Em “A Arte da Guerra”, Sun Tzu nos ensina que toda a guerra é baseada no logro. Longe de mim querer corrigi-lo, contudo acrescentaria que toda guerra é baseada no logro de inocentes. Os Senhores da Guerra e seus asseclas jamais estão de armas em punho na linha de frente. Jamais pensaram em estar nessa posição. Ficam protegidos em suas salas refrigeradas, colhendo os espólios da insanidade por eles disseminadas para que tais guerras sejam legitimadas. E dormem tranquilos. Assim o era nos tempos de Sun Tzu e infelizmente assim o é em nosso tempo,  mesmo que passados mais de 2.500 anos.
     Imaginemos o cenário inicial da nossa tragédia belicosa: estimulados por falácias ditas por eleitos pais de famílias, de que o ilícito seria lícito, pais de família fazem a opção pelo cometimento de crimes ambientais, acreditando que assim sua casa seria coberta de riquezas e felicidade. Se, ao invés de dar ouvido a falácias, tivessem eles a oportunidade de escutar Cartola, saberiam que “o mundo é um moinho, vai triturar teus sonhos, tão mesquinho. Vai reduzir as ilusões a pó”.
     Assim, envoltos pela névoa da ignorância e inebriados pelas falsas promessas de que a fortuna lhes sorriria, adentram o coração da floresta amazônica para, furtiva e ilicitamente, cortarem suas valiosas árvores. Enquanto um pai de família trabalha no desmatamento ilegal, outro pai de família, também de forma ilegal, o protege com uma arma de fogo. Em determinado momento, uma equipe de agentes do Estado, todos também pais de família, ali colocados por outros eleitos pais de família, chegam ao local do ilícito. Ao perceberem a situação em flagrante delito, dão ordem de parada, os suspeitos fogem, adentram a mata e, escondidos, atiram contra os agentes que, para preservar suas vidas e da equipe, respondem com tiros. Após segundos barulhentos, faz-se o silêncio, os agentes avançam para mata e lá se deparam com um dos suspeitos gravemente ferido com um tiro na cabeça. Rapidamente o levam ao hospital, contudo a indesejada morte foi mais ágil. Se, ao invés de dar ouvido a falácias, tivessem eles a oportunidade de escutar O Rappa, saberiam que “também morre quem atira”.
     Tendo o mesmo cenário como pano de fundo, entendo que tais criminosos, mesmo o que furtivamente atirou contra os agentes que ali estavam fazendo seu trabalho com a única intenção de cessar o crime ambiental flagrado, também são inocentes. Não inocentes sob a ótica penal, mas inocentes sob a ótica dos que, inocentemente e sem qualquer noção das consequências dos seus atos, foram induzidos a entrar nessa guerra sem qualquer discernimento do que isso representa e, mais ainda, sem consciência das óbvias consequências potencialmente fatais de se atirar contra profissionais treinados para o confronto. O resultado esperado é exatamente o que aconteceu, mais uma vítima fatal nessa guerra estúpida e desnecessária. Mais uma família despedaçada. Mais filhos órfãos, querendo vingança contra os algozes de seu pai. Se, ao invés de dar ouvido a falácias, tivessem eles a oportunidade de escutar Legião Urbana, saberiam que  “o Senhor da Guerra não gosta de crianças” e que mesmo assim, ele “está contando com você, pra lutar em seu lugar, já que nessa guerra, não é ele quem vai morrer.
    Enquanto familiares e amigos pranteiam seu morto e os agentes ambientais se organizam para evitar que mais mortes venham a ocorrer, os Senhores da Guerra comemoram o acirramento desse combate, pois, para eles, quanto pior, melhor. Não há qualquer compromisso com a preservação do meio ambiente e o cumprimento das leis. Não há qualquer compromisso com os servidores públicos que tentam fazer cumprir a Constituição. Não há sequer qualquer compromisso com seus eleitores e aliados, que vão à guerra para por eles morrerem. Apenas há a certeza de que muitos lucros virão dessa tragédia, seja sob a forma do vil metal, seja sob a legitimação de suas atitudes pelo voto obtido através da exploração dos corpos e das vidas dos menos favorecidos, que ainda acreditam que desses eleitos há de vir a salvação.
     Estamos todos sendo jogados nesse ardente caldeirão de vidas que, se não ajudamos a acender as chamas, no mínimo não fomos eficientes em impedir a sua propagação.
 

    A situação na região amazônica, que sempre foi tensa, tende a piorar muito após essa tragédia anunciada. Estamos à beira do pior tipo de guerra, a tida como do Bem contra o Mal, na qual ambos os lados tem a certeza absoluta que estão do lado Bem. Nada de bom pode vir desse conflito. Nunca foi diferente, não o será agora. Espero estar equivocado, como muitas vezes estou, mas, como dito há pouco, “também morre quem atira” e, cada vez mais, há muitos querendo atirar na região. Lá, o fogo nos flagela e se impõe, esteja ele em nossas matas ou em nossas armas prontas para matar. E para morrer.
     Logo após esse confronto fatal, em um áudio que circula pelas redes sociais, alguém brada em tom furioso: “tá 1 a zero, vamos empatar!”. Muito mais pranto há de vir e mais inocentes tombarão nessa guerra sem vencedores. Sejam árvores queimadas vivas. Sejam animais silvestres queimados vivos. Sejam humanos que atiram contra humanos pelo seu pretenso direito de queimar vivos quem eles quiserem. E assim, cruzamos o portal do inferno de Dante e a terra devastada se afigura no horizonte próximo. 
    Apesar dos pesares, seguem a gargalhar os Senhores da Guerra. Nosso infortúnio não os incomoda. Seu mundo é plano e refrigerado. As chamas da nossa Roma verde o encantam e divertem, pouco importa que lá muitas sejam as vidas reduzidas a pó. Pouco importa que essas chamas aumentem o calor que aqui é sentido por todos nós, pobres mortais suados que vivem fora das seguras salas refrigeradas do poder.
     Toda a guerra é baseada no logro de inocentes.
     E, não sejamos ingênuos de acreditar que se trata de mero caso fortuito fatal. Nuvens cinzas se avolumam e anunciam o início da tempestade que colheremos dos ventos sombrios que, em tom de chacota, vimos serem plantados nos últimos anos.
     E, se não falhar a fala Shakesperiana de Henrique V, essas constantes e toscas zombarias em breve perderão sua graça, quando fizerem chorar muito mais do que fizeram rir.

Carlos Magno Abreu, mais conhecido como Batata, é Analista Ambiental do IBAMA desde 2003, mestre em biologia marinha, tentando terminar de escrever sua tese de doutorado, autor do livro “A história da Operação Boitatá e a serpente de um milhão de dólares: o Brasil na rota do tráfico internacional de animais silvestres” e eventualmente publica textos no seu blog SomosUnsBossais. (http://somosunsbossais.blogspot.com)
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Textos relacionados
- ASCEMA - Nota de apoio aos fiscais do Ibama diante de fatos lamentáveis ocorridos em RR
http://www.ascemanacional.org.br/wp-content/uploads/2020/02/Nota-de-apoio_RR.pdf


- Veja - Ibama foi recebido a tiros em operação que deixou um morto
https://veja.abril.com.br/brasil/entidade-ibama-foi-recebido-a-tiros-em-operacao-que-deixou-um-morto/

- G1 - Homem é atingido com um tiro e morre em fiscalização do Ibama em Rorainópolis, Sul de RR
http://g1.globo.com/rr/roraima/videos/t/todos-os-videos/v/homem-e-atingido-com-um-tiro-e-morre-em-fiscalizacao-do-ibama-em-rorainopolis-sul-de-rr/8290491/

- O Norte Vegano: Verdades Inconvenientes sobre o Fogo que Destrói a Amazônia nesse exato momento. (23 de agosto de 2019)
http://somosunsbossais.blogspot.com/2019/08/o-norte-vegano-verdades-inconvenientes.html

- Relatos Selvagens sobre o mais distópico Dia do Meio Ambiente. (05 de junho de 2019)
http://somosunsbossais.blogspot.com/2019/06/relatos-selvagens-sobre-o-mais_5.html

- Encarando o abismo - considerações sobre a nossa “extinção”. (02 de novembro de 2018)
http://somosunsbossais.blogspot.com/2018/11/encarando-o-abismo-consideracoes-sobre.html

Um comentário:

  1. Meus caros!Vou ser sincero...não entendi esta matéria e posicionamento deste Blog!Também morre quem atira e a guerra é baseada no logro dos inocentes....Então, morremos ao atirar e ainda estamos fadados a dar aos canalhas que usam está guerra o logro de se posicionarem como inocentes??? Essa é a ideia e mensagem em escondida nessa postagem em um momento tão difícil para quem trabalha na área ambiental e aos verdadeiros heróis, que são os povos das floresta e todos que verdadeiramente ocupam um palmo de terra com o devido respeito na Amazônia. Não estou realmente certo das minhas palavras...mas!! Em tempo de luta já tivemos flores em algumas guerras. Contudo, com certeza elas não estavam nas trincheiras e entre os mortos...e acredito que ném todos que atiram morrem.

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